Ícaro preto em pleno voo
crítica de MACACOS, de Clayton Nascimento, da Cia. do Sal.
MACACO. Ma. Ca. Co. Ma-ca-co. Macaco. MACACOS. A ofensa racista, ecoada em tons de arquibancada de futebol, chega antes do que Clayton Nascimento no palco. Sua voz repete e repete e repete insistentemente, vociferando cada sílaba. MACACOS, da Cia. do Sal, é uma encenação de dimensões impressionantes no que diz respeito ao trabalho de Nascimento, intérprete, dramaturgo e diretor, à profundidade e relevância de seu discurso e à conexão criada com a plateia.
O espetáculo começa a ser criado em 2015, e sua dramaturgia-denúncia é dolorosamente aberta. Seu texto, recentemente publicado pela editora Cobogó, estrutura-se de forma porosa a inserções ligadas a novos episódios de racismo e violência racial no país. E não são poucas. Emicida canta que 80 tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo; Nascimento faz de seu corpo-alvo um corpo-mapa, corpo-tempo, corpo-voo, corpo-vida. Em suas duas horas, MACACOS conta sobre mais de quinhentos anos.
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Nos últimos anos, tornou-se cada vez mais comum a presença de monólogos autobiográficos (ou autoficcionais) nos palcos de São Paulo. Quantos são de pessoas pretas? Quantas dessas narrativas estão falando em primeira pessoa a partir da violência da história da escravidão e de suas reverberações nos racismos recreativos, estruturais, cotidianos? Pois Nascimento parte de si, de suas vivências, de agressões sofridas, para implicar-se e também implicar todas as pessoas do público na reflexão em torno dos reflexos do colonialismo escravocrata que fundou este Brasil.
O título da obra é ponto de partida: MACACOS. A ofensa racista absolutamente desumanizante e abjeta é assumida, em perspectiva crítica, por Nascimento: se sabemos como tem acabado a vida do negro no Brasil nos últimos anos, nós já sabemos como acabará esta peça. Então, avise a todos: o macaco chegou. E segue: mas o macaco antes de ser macaco, ele, pelo menos aqui nesta peça, o macaco vai escolher quem ele quer ser.
Uma das linhas de força do espetáculo é a relação épica construída com a cena em si: além de narrar sua própria trajetória, apontando para o contato ainda muito jovem com aulas de teatro como sua salvação, Nascimento faz do palco um campo de possíveis; um espaço de criação infinita de encontros. Um sol que não derrete as asas deste Ícaro preto, mas lança luz em seu caminho.
Mas não há romantização a partir desta perspectiva individual: MACACOS é sucessão ágil, ora bruta ora didática, de quadros de denúncia da violência de Estado e do genocídio da população preta e pobre do Brasil. Sozinho no palco, sem cenários ou adereços, Nascimento faz de seu corpo – e de sua voz! – veículo de comunicação, memória, sonho e luta, entre a ordenação do professor diante da turma de estudantes e uma selvageria que manifesta a brutal realidade.
No ato único de MACACOS, episódios que explicitam a função do teatro como alargamento de horizontes, que versam sobre as violências do hoje, que apresentam uma incessante perseguição e que são uma verdadeira aula magna sobre colonização, escravidão, violência, opressão e educação. Nascimento, em movimentações intensas e precisas, conduz o público entre as levezas e durezas necessárias para sustentar o complexo discurso da encenação.
Ocupando todos os espaços do palco nu, banhado pelas luzes de Danielle Meirelles, Nascimento tem como elemento cênico apenas um batom, com o qual faz de seu corpo lousa, mapa e território. As linhas e formas vermelhas em sua pele negra são também o sangue da história – da nação e de suas incontáveis vítimas.
Tragédias individuais e coletivas ganham o palco. Nascimento interpreta e evoca figuras reais, em uma pedagogia cênica que transita entre representação e narrativa didática na busca de construir simultaneamente um discurso cristalino e uma encenação dinâmica. O intérprete captura sua plateia sem permitir que ela deixe de lado a reflexão por um só instante.
MACACOS localiza historicamente origens do que se vive hoje e também lembra da importância de nomear as coisas – e as pessoas. Nascimento interpreta Terezinha Maria de Jesus, assim como também corporifica seu filho, Eduardo de Jesus – assassinado pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro no quintal de sua casa, aos dez anos. O artista e Terezinha se tornaram próximos, e a Cia. do Sal faz parte da campanha #JustiçaParaEduardo. É a voz desta mãe que encerra a encenação, ao lado de um combinado proposto por Nascimento: de que chegaremos bem, todes, em nossas casas.
Antes disso, um juramento conjunto. É a possibilidade de que no teatro funde-se um pacto civilizatório, atento aos caminhos de onde viemos e desejosos de um porvir menos violento. Nós já sabemos como acabará esta peça. Há muito o que fazer, tanto no campo do simbólico quanto no pedagógico – e fundamentalmente no cotidiano – para que se vislumbrem outros futuros. Nascimento, Ícaro preto, faz de MACACOS um pleno e belo voo na direção deste horizonte.
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ficha técnica MACACOS Ator, diretor e dramaturgo: Clayton Nascimento Direção técnica/iluminação: Danielle Meireles Técnico de luz: Vinícius Bogas Provocador cênico: Ailton Graça Direção de movimento: Aninha Maria Miranda Preparação de voz: Lúcia Gaioto e Camila Adriano Produção geral: Ulisses Dias - Bará Produções Produção executiva: Corpo Rastreado Assessoria de imprensa: Canal Aberto Comunicação foto de capa: Noelia Nájera