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um festival se faz no caminhar

olhar crítico sobre as obras do IV FESTÃO  –  Festival Regional de Teatro, organizado pela Rede Teatro   - Metropolitana de Sorocaba (Votorantim, novembro de 2022). amilton de azevedo viajou a convite da organização. este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

O que é, afinal, um festival? Aliás, por que é um festival? Não se trata de uma pergunta retórica, ao mesmo tempo em que é impossível haver resposta única. Em 2018, coletivos, artistas, professores, produtores – enfim, o povo do teatro – da região metropolitana de Sorocaba, no interior do estado de São Paulo, decidiram formar a Rede Teatro – Metropolitana de Sorocaba. Fortalecimento da cena local na articulação política, ética e estética; compartilhamento de experiências e procedimentos e, dentre outras tantas possíveis intenções e desdobramentos, a criação de um corredor cultural na região: é deste desejo que nasce o FESTÃO – Festival Regional de Teatro, que chegou à sua quarta edição em 2022.

Quatro edições, quatro cidades: Sorocaba (2019) foi a primeira a receber o evento – o que seria óbvio, considerando a logística e o número de grupos concentrados na cidade-sede da unidade regional – seguida da pequena Pilar do Sul, no mesmo ano (2019 – primeira edição acompanhada pelo ruína acesa; leia sobre os laços políticos, poéticos e afetivos) e, depois da dose dupla, um hiato por conta da pandemia até o retorno do FESTÃO em São Roque (2021) – ali, ficou nítido que a retomada possível é coletiva.

Somando as quatro edições, o FESTÃO já promoveu mais de cem apresentações artísticas, dentro da diversidade possível das linguagens cênicas, das formas de produção e das trajetórias de artistas e coletivos da região. E como é sabido, o caminho se faz ao caminhar: cada um dos festivais trouxe consigo estruturações e experiências singulares, consolidando-se cada vez mais como um corredor em constante movimento.



Se ainda há uma presença majoritária de obras de Sorocaba – foram sete das 17 do II FESTÃO, dez das 25 no III FESTÃO e onze das 24 nesta IV edição – há também a insistência em buscar representantes de todas as cidades que englobam a região metropolitana. Entre as dez cidades representadas no IV FESTÃO, populações que variam de menos de quatro mil habitantes (Quadra) a quase 750 mil (Sorocaba). A distribuição dos grupos acaba também por refletir a dimensão do fazer teatral em cada um desses locais – não raro, cidades do interior paulista têm apenas um coletivo de teatro atuante. Além de Sorocaba, duas localidades trouxeram mais de um trabalho: a anfitriã Votorantim contou com quatro representantes e São Roque, com dois. 

Assim, trabalhos de repertório de coletivos de trajetórias estabelecidas dividem a programação com estreias de grupos recém-criados, além da inclusão de espetáculos concebidos em ambientes escolares, por jovens estudantes. Uma característica do festival, que vêm desvelando seu caráter formativo (do público, de artistas) neste instável e frutífero equilíbrio, é uma curadoria que reitera convites e não deixa de fazer novos: em 2022, a programação trouxe uma divisão perfeita entre grupos novos e aqueles que haviam apresentado trabalhos na edição anterior. 

Desse modo, mantém-se e aprofundam-se as trocas, olhares, fruições e articulações, ao mesmo tempo em que há espaço para novos encontros; das tantas pessoas e seus tantos modos de fazer teatro e entre as cidades, mais próximas ou distantes. A presença de uma roda de conversa sobre o Teatro no Interior na programação foi também uma tentativa de expandir o olhar para as especificidades de cada cidade; diálogos deste tipo são fundamentais para que o FESTÃO reverbere para além dos dias de sua realização e assim a Rede Teatro efetive-se enquanto campo fértil para os teatros da região.

Então, no início de novembro de 2022, em Votorantim, ao longo de quatro dias e dois locais (ainda que a programação previsse a utilização da praça, as condições climáticas impediram), um palco italiano e um espaço alternativo receberam os vinte e quatro trabalhos, o público do festival, composto também por integrantes dos coletivos artísticos participantes, o público espontâneo da cidade, de várias idades e perfis, e, dentro do excelente programa Escola no Teatro da prefeitura de Votorantim, ônibus e ônibus escolares repletos de crianças e jovens, muitas e muitos indo pela primeira vez ao teatro.

É a partir deste tanto que este texto, agora, falará um pouco sobre cada trabalho apresentado no IV FESTÃO – Festival Regional de Teatro, organizado pela Rede Teatro – Metropolitana de Sorocaba, em Votorantim.

A Cigarra e a Formiga (A Trupe da Cigarra, Votorantim)

O Teatro Municipal de Votorantim abriu suas portas pela primeira vez no IV FESTÃO para a estreia do primeiro trabalho da Trupe da Cigarra, grupo formado por jovens artistas da cidade. Mesmo diante de circunstâncias desafiadoras – no melhor sentido, já que tratava-se de apresentação dentro do programa Escola no Teatro da prefeitura municipal, onde a plateia foi tomada por crianças, muitas indo pela primeira vez ao teatro – “A Cigarra e a Formiga” já ganhou os palcos de forma promissora.

Apostando na interação desde o início e propondo um bate-papo direto e bem mediado com o público infantil após a apresentação, voltado para a escuta das reverberações e também a possibilidade de vislumbrar caminhos futuros da encenação, a Trupe da Cigarra subverte as expectativas da fábula clássica, propondo composições e movimentações que fazem bom uso de todo o espaço (o que poderia ser potencializado pela iluminação).

A presença do narrador é importante para o espetáculo, ainda que seu texto pudesse ser mais poroso, solto, leve. A direção aponta para gestos bem definidos das personagens, que ganhariam ainda mais potência se sustentados até o final pelo elenco. Estrear na abertura de um festival, diante de uma plateia lotada, diversa e curiosa, não é simples, mas a Trupe da Cigarra teve sucesso em cativar o público de pequenos, ávidos por participar da conversa no final, com comentários genuinamente interessantes e interessados e perguntas que emocionam e inquietam.

Baguncinha (Cia. Los Carneiros, Votorantim)

Pai e filha. E um avô, presente enquanto homenagem e ancestralidade. A “Baguncinha” da Los Carneiros traz consigo a lembrança da beleza que há na tradição circense familiar, tão presente nas nossas tradições populares e também muitas vezes invisibilizada e diminuída em relação a outras teatralidades.

A homenagem familiar não está só na menção inicial, projetada no telão: a realização em si do trabalho é toda reverente. A dupla estabelece a magia circense logo na entrada, sustentada desde o início, no silêncio, ainda que haja certa dificuldade na condução da cena em certos momentos por conta da escolha do não dizer. Nesse sentido, a construção de um gestual que não seja emulação da fala, mas em si significante, é um desafio colocado para a obra.

Outra questão possível de se observar são as referências presentes na trilha sonora: como balancear a distância geracional entre pai e filha, incluindo crianças de todas as idades neste jogo? O flossing, por exemplo, é bem encaixado, sem que seja necessário também apelar para uma artificialidade na inserção de elementos meméticos das redes sociais. Assim, ganha-se na potência da relação construída entre palco e plateia. E nas interações com o público, uma intensidade crescente até que o trabalho torna-se seu nome: uma deliciosa baguncinha é atingida no clímax da encenação. 

Era uma vez uma cor (Cia. Teatral 4 Cantos, Quadra)

Um bonito espelhamento: crianças na plateia se veem no elenco extremamente jovem. Inspirada em “Flicts”, do Ziraldo, a Cia. Teatral 4 Cantos, da pequena cidade de Quadra, traz em sua obra um eminente trabalho formativo de seu elenco em idade escolar. Ainda assim, é perceptível a dimensão dos esforços: as crianças e adolescentes falam bem, não hesitam, movem-se com precisão para as composições cênicas e também conseguem ficar paradas no palco – o que nem sempre é simples!

A direção investe em cenas coletivas, com bom uso do espaço, acompanhadas de uma iluminação que garante o dinamismo da encenação – que ganharia ainda mais cores com a utilização de elementos cênicos em mais momentos de “Era uma vez uma cor”. As repetições nos diálogos são um acerto no sentido de facilitar a compreensão do texto, ainda que momentos pontuais da dramaturgia dão a impressão de não auxiliar no desenvolvimento da narrativa.

É curioso observar algumas circunstâncias adversas: o agito das crianças na plateia, ainda que muitas vezes estejam apenas extravasando suas sensações diante da obra em si, por vezes apresenta-se como desafio para os jovens no palco serem ouvidos. Também, o palco do Teatro Municipal de Votorantim parece bem maior do que o local de ensaio da 4 Cantos – o que gera alguma dilatação temporal nas movimentações por conta das distâncias a serem percorridas para entradas e saídas de cena. Nada que ofusque o brilho das tantas cores no palco.

Circo Saltimbancos (Trupe Ocuspokus, Sorocaba)

Tão significativa quanto uma estreia é uma despedida: a apresentação da Trupe Ocuspokus no IV FESTÃO marcou a última vez em que o “Circo Saltimbancos” abre suas cortinas diante de uma plateia. A Trupe Ocuspokus leva aos palcos a tradicional peça de Chico Buarque, com a adição de números circenses e uma grande abertura para interações com a plateia. E nesta última dança, brincam até o final: o divertimento do elenco era nítido, com diversas quebras, aproveitando o grande número de pessoas amigas e conhecidas na plateia – e, por outro lado, um número pequeno de crianças, talvez o maior público-alvo.

Há uma certa cisão entre os elementos estruturantes do espetáculo, o que faz com que a atenção seja muitas vezes dividida entre música e circo, por exemplo, e o intenso jogo entre as camadas ficcionais e as brincadeiras do elenco acabou por tornar-se mais uma. Não que isso gere prejuízo na fruição: lá está a narrativa bem conhecida, a teatralidade da encenação, as quebras da quarta parede e, mais importante, a alegria de estar em cena.

E o palhaço, o que é? (Cia. Sítio do Jeca, Pirassununga)

No Aquário, espaço cultural alternativo de Votorantim, a Cia. Sítio do Jeca apresentou “E o palhaço, o que é?”. No solo, a biografia do artista é o ponto de partida singelo para falar sobre a importância e a potência da arte. A intenção é permeada por beleza e honestidade, carregando também consigo uma certa didática em sua estruturação: talvez voltada para públicos menos acostumados a fruir trabalhos artísticos, organiza sua narrativa como um caminho de aprendizados em torno do fazer artístico.

Apresentada sobre o palco, a distância estabelecida entre artista e plateia não era apenas física; há de se pensar em torno das possibilidades de romper as hierarquias entre quem faz e quem assiste, construir relações verdadeiramente interessadas no brincar junto – e, também, descobrir como lidar com situações adversas, entendendo-as como presentes para o palhaço, e não problemas para o andamento e o ritmo da encenação. É nesse encontro genuíno que a biografia compartilhada pode coletivizar-se, fazendo de si – e da arte – um convite para todes e não apenas demonstração de um indivíduo.

Aos (entes) não queridos (Coletivo Narciso, São Roque)

O Coletivo Narciso apresentou um trabalho de mesmo nome no III FESTÃO, mas de tessitura radicalmente distinta em relação a esta versão de “Aos (entes) não queridos”. Em São Roque, público dividia-se: uma parte acompanhava uma encenação itinerante pela cidade; outra permanecia em um espaço do Centro Cultural e Educacional Brasital. Agora, todes estão em um mesmo espaço, que é aos poucos delimitado pelo Narciso. Um quadrado que é mapa, cidade, tabuleiro, campo de batalha…

Há uma questão que permeia as duas versões da obra, talvez de ordem conceitual. As relações estabelecidas entre performers e públicos são – possivelmente de forma intencional – confusas, oscilando entre cúmplices e inimigos, sem que haja exatamente um caminho dramatúrgico (seja no texto, seja na cena) que aponte para tais transformações. 

O discurso de “Aos (entes) não queridos” emerge cristalino, mesmo diante de certo caos, até mesmo pela repetição e insistência presentes no trabalho do Narciso. Porém, a forma proposta parece não dar conta, com imagens que não chegam a se esgotar tampouco se transformam. Nas diversas camadas da encenação há indícios das intenções, desde o figurino até a interessante lida com a iluminação e a espacialidade, mas permeia por toda a obra uma pergunta fundamental: para quem é dirigido este trabalho? Com quem pretende dialogar? Em suma, quem é o público diante dos performers?

A Vaca Notícia (Grupo Alta – E.E. Altamir Gonçalves, Sorocaba)

A manhã de sexta-feira do IV FESTÃO começou com mais uma estreia, agora de um grupo escolar de Sorocaba. O Alta é formado por jovens estudantes do oitavo ano de uma escola estadual da cidade, e mais uma vez o projeto Escola no Teatro lota as plateias com crianças que se veem no palco. Na cena, uma espécie de “A revolução dos bichos” atualizada, subvertida, recriada, dessa vez em uma trajetória que vai de um regime autocrata, uma ditadura de iletrados, à democracia, com animais debatendo seus próprios rumos em assembleias públicas.

Para além da mensagem política apresentada com muita leveza, “A Vaca Notícia” é uma dramaturgia bem elaborada, com raros momentos que necessitam de ajustes para uma maior dinâmica no ritmo da encenação, e extremamente apropriada pelo jovem elenco. Há um rigor bonito de ver no trabalho desenvolvido pelo Grupo Alta, que ao mesmo tempo não deixa de transparecer a diversão e a alegria de estar em cena contando aquela história.

Assim, a trajetória ficcional e as relações fundamentais para a criação teatral caminham de mãos dadas: “A Vaca Notícia” é sobre a importância do diálogo, da educação e, essencialmente, do coletivo.

Oras Bolas (Payaso Chungo Malungo, Sorocaba)

A apresentação do Payaso Chungo Malungo estava prevista para a praça, mas o vento e o frio motivaram a alteração (acertada!) para dentro do Aquário. Antes do início de “Oras Bolas”, a organização do IV FESTÃO convidava as pessoas que estavam na área externa. De longe, uma pequena criança corria, acelerando sua mãe, para ver o palhaço. 

Diante da técnica impressionante de Chungo, duas meninas não se aguentavam sentadas nas cadeiras. Acompanhavam cada movimento do exímio malabarista com o corpo inteiro, sempre prestes a entrar na cena. Adolescentes, que sempre parecem ressabiados, aos poucos baixaram sua guarda e entraram no jogo da palhaçaria.

Para além das habilidades corporais e mentais exigidas pelo número, Chungo é um artista de escuta extremamente aberta. Cada reação da plateia chegava a ele como um presente e era absorvida e muito bem aproveitada. Ao final, foi inevitável: as duas garotinhas correram para o pequeno picadeiro e deram-lhe um caloroso abraço. Nesses encontros, a magia da arte, assim como as tantas bolas lançadas e equilibradas por Chungo, se espalha pelo ar.

Estratosférica (Grupo de Teatro Escarafunchar, Pilar do Sul)

Um título pode revelar muito sobre um trabalho. “Estratosférica”. O Grupo de Teatro Escarafunchar faz deste solo um voo panorâmico, de dimensões imensas mas também com grande capacidade de síntese.

Na dramaturgia, uma série de fragmentos de textos teatrais, poesias, canções, manifestos. Uma colagem de tantas vidas que podem contar de uma só mulher. A sequência escolhida para os recortes estabelece tanto a narrativa pretendida nesta trajetória quanto a proposta em si; os caminhos dos discursos, para além de uma linearidade histórica, apontam para este tanto que pode significar.

Com textos de diversas linguagens, a encenação também transita por várias possibilidades de interpretação – e ruídos, como a lida com uma banana em certo momento, só ampliam a teia de significados costurada por “Estratosférica”. O grupo poderia, aproveitando seu próprio nome, escarafunchar ainda mais estas imagens, compreendendo como os gestos podem transformar-se em ação, de um fragmento a outro; o que permanece, o que retorna, o que termina nesta sucessão de imagens e discursos. Compor este todo – ou melhor, esta toda: entre luz e sombra, poesia e denúncia, há algum equilíbrio possível?

E fora dos stories? Cê tá bem? (Julio Mello, Votorantim)

Identificação absoluta. Não há outra forma de falar sobre o trabalho de Julio Mello: “E fora dos stories? Cê tá bem?” traz em seu título o tema central, um meme com (enorme) fundo de verdade. A solidão contemporânea, muitas vezes associada ao uso (obsessivo?) de redes sociais, é atravessada pelas personagens criadas por Mello – inclusive o célebre Cerotinho – que fazem da cena uma espécie de comédia de tipos, todos em algum grau identificáveis, mas levados ao extremo nas composições físicas, corporais e vocais do artista.

Além disso, Mello também compartilha suas próprias angústias desde o início do espetáculo, seguindo durante as trocas de figurino e abrindo-se de forma genuína mais próximo do final – sua transparência, alinhada a um inegável magnetismo, gera empatia imediata. “E fora dos stories?” poderia encontrar para estes momentos – especialmente os de transição – uma dramaturgia melhor amarrada, a fim de manter o (ótimo) ritmo da encenação e também abordar alguns conceitos de forma mais precisa, como a pós-verdade, apresentada de modo um pouco solto e confuso na estreia do trabalho, durante o IV FESTÃO.

O humor segue sendo ferramenta poderosa para abordar muitos dos temas que nos incomodam. “E fora dos stories? Cê tá bem?” conquista pelo riso exatamente pela necessidade compartilhada de falar, de algum modo, sobre essas aflições e dores trazidas pela hiperconexão oferecida pela tecnologia e pelas redes sociais. Estamos conectados o tempo todo, mas profundamente sozinhos. 

Poesia que espanca (Uma de Nós – Ateliê Teatral, Sorocaba)

“Poesia que espanca”, da Uma de Nós, esteve no II FESTÃO, em Pilar do Sul. Apresentada no palco e nas plateias do teatro, desde os primeiros instantes deixava cristalina sua intenção, seu discurso; seu manifesto. Agora, tornado produto audiovisual, sob orientação de Fernanda Raquel, parece ter encontrado o suporte perfeito para seu material dramatúrgico.

Nas escolhas da fotografia e da montagem, as narrativas-depoimentos vão bordando-se em imagens sutis, ganham corpos cujos rostos não se apresentam, lugares concretos de violências e abstratos, onde os sentidos se compõem por meio de metáforas e da fruição de cada espectador; as vivências de uma(s) que se torna(m) de muitas.

E então, um caminhar; como se na busca de outras histórias pela história pudesse ser fonte de força e acalento, possibilidade de libertação. Uma de Nós, em sua “Poesia que Espanca”, evoca muitas; muitos nomes, reconhecíveis ou não, entre mulheres vitimadas e mulheres que inspiram. 

EVEC – Experiência Visionária em Cena (EVEC, Sorocaba)

Um ator que desde o início anuncia que todos os seus números são truques; enganações. “EVEC” é a prestidigitação declarada, que na anulação da própria aura de mistério constrói uma atmosfera surpreendente de magia.

Entre os números, alguns com artifícios mais reconhecíveis – mas a condução que seduz dentro do jogo da ilusão – e outros realmente inexplicáveis ao olhar leigo. Uma “Experiência Visionária em Cena” que, na habilidade e carisma do ator-mágico, é puro encantamento.

Oferenda (Rose Nikoleski, Sorocaba)

O que pode ser uma oferenda? A palavra traz consigo distintos significados e compreensões dentro de diferentes acepções de mundo e de fé. Na construção espacial da  performance de Rose Nikoleski, códigos que à distância parecem reconhecíveis são, ao observados mais de perto, difusos; conforme sua ação desvela os elementos ali presentes, não se pode compreender se trata-se de subversão, paródia ou ingenuidade no truncamento dos sagrados e profanos colocados em movimento.

Há na dramaturgia uma estranha carga dramática, considerando a linguagem da performance, além de uma colagem desordenada de imagens, códigos, composições corporais. O caos poderia ser o fundamento desta “Oferenda”, mas é inevitável pensar que há uma tentativa de ordem que depõe contra a intencionalidade de tal organização.

Sertão do João (Cia. Liber D’Arte, Ibiúna)

A Cia. Liber D’Arte trouxe um trecho de seu novo trabalho em desenvolvimento: “Sertão do João” deve ter como inspiração a fábula “João e o pé de feijão”, com a presença do confronto do garoto com um gigante. Parece interessante refletir sobre a motivação para a escolha da regionalização, considerando que a Liber D’Arte opta por um imaginário tão tradicional quanto inventado em torno da região nordeste do país.

Sendo o espetáculo apresentado no IV FESTÃO apenas um recorte, ficam no ar as possibilidades de caminhos para a dramaturgia. Cabe, nesse sentido, pensar em torno do humor sendo construído em relação ao público-alvo da encenação – ao que tudo indica, uma obra de teatro para as infâncias. Também, a construção corporal de todas as personagens poderia ser trabalhada na direção do extracotidiano, como já se vê apontado na figura do gigante: para que a encenação ganhe em ritmo, é importante que haja uma maior precisão nesta composição, mesmo que cada uma enverede para uma movimentação mais reta ou mais flexível.

Mãe do Corpo (Cia. Tubarão que deu Origem a Série, Sorocaba)

Baseado no livro homônimo da poeta Tania Orsi, “Mãe do Corpo” explora as formas de levar a poesia à cena e o caminho que leva às palavras. O corpo que diz, a música que diz, a palavra lida, o gesto no ar, a fumaça que dança. No palco, o espaço se constrói, preciso e fluido, em movimento e luz.

A Cia. Tubarão que deu Origem a Série faz com que, na costura poética, a amarração da narrativa vá abrindo-se em camadas e camadas de sentido, insistindo no tempo como matéria de composição.

Lavo minhas mãos? (Silvana Sarti, Sorocaba)

Uma performance-síntese. Silvana Sarti explora a imagem-título enquanto pergunta; talvez seja um clichê, mas clichês tem razão de ser. Entre Pilatos, Lady Macbeth e o contemporâneo, mais do que o que carrega a imagem em si é o modo, a temporalidade e a presença de Sarti que confere à “Lavo minhas mãos?” uma simplicidade impactante.

Em uma sequência de ações, a performer parece dar conta de muito do que nos cerca. Relações de classe e raça estão ali na primeira camada, bem diante dos olhos do público. Mas na intensidade do olhar, na precisão de cada gesto, talvez ali, atravessado por tanto e tanto, resida o abismo das humanidades contemporâneas. 

Opa! Mais uma vez (Companhia de Eros, São Roque)

A partir de “Peças e Pessoas”, dramaturgia de Luís Alberto de Abreu, a Companhia de Eros estreou, em 2017, “Opa! Mais uma vez”. Com adaptação e direção de Lisa Camargo, o espetáculo esteve na programação do primeiro FESTÃO e agora retorna para o espaço do Aquário, em Votorantim, na quarta edição. A companhia de São Roque, anfitriã do FESTÃO de 2021 e presente em todos os festivais, faz da cena tabuleiro de xadrez e do elenco suas peças. 

Peões tomam consciência das injustas regras do jogo na narrativa ambientada entre sociedade distópica e espaço fabular, entendendo que o componente classista mais une do que separa distintas camadas sociais. A disposição cênica estabelece nitidamente as oposições, ao mesmo tempo em que, na trajetória das personagens – cujas ações, ainda que preenchidas de subjetividade, representam muito mais do que indivíduos – as composições orquestradas por Camargo tornam o suposto equilíbrio dos reinos um balanço instável, passível de fissuras e rupturas. 

Como nos lembra a poesia de Brecht, nada deve parecer natural, nada deve parecer impossível de mudar. No próprio título, um duplo achado brechtiano: “Opa! Mais uma vez”, como espécie de procedimento, de evocação à repetição, funciona simultaneamente como recurso de estranhamento e de divertimento.

A construção épica da encenação é potencializada pelo domínio do elenco da Companhia de Eros diante do material sendo mobilizado: o coro está sempre atento, integrado à cena em suas corporalidades coletivas, e há uma compreensão absoluta das atrizes e atores em relação às reações e comentários delas e deles enquanto narradores conscientes de seus papeis naquela representação.

Seu Bonanza em O Jogo do Amor (Nossa Trupe Teatral, Tatuí)

Um palhaço que deseja gravar um filme sobre o amor. Em “Seu Bonanza em O Jogo do Amor”, a Nossa Trupe Teatral parte desta premissa, aparentemente simples, para construir um espetáculo marcado por experimentação, risco e estranhamentos. Rodrigo Costa – Seu Bonanza – alinha precisão, técnica, escuta e improviso na lida com os tantos elementos da cena e com todos os estímulos que se apresentam.

Com elaborada dramaturgia corporal, “O Jogo do Amor” estabelece a sua narrativa com alguns ruídos, de modo que certos sentidos permanecem em aberto no meio de tudo que se articula. Costa preenche o palco com materialidades diversas e, diante do público, explora os mecanismos de criação e interação com os objetos que vão ganhando sentidos, compondo imagens, contando histórias. Uma homenagem ao cinema, números de palhaçaria, momentos inesperados: sob o olhar de Seu Bonanza, o amor é jogo, repetição, insistência, engraçado, sério, efêmero, suspenso. 

Oh So PajaSSo (Cia. Lá de Casa, Sorocaba)

Companhia Lá de Casa de Circo, Teatro e Educação. Em “Oh So PajaSSo”, Rodrigo Zanetti faz do palco sala de aula, picadeiro e… palco. Professor e palhaço, palhaço e professor. Ser professor, ser palhaço; ser palhaço, ser professor. No Brasil. No interior do estado de São Paulo. É: parece que pra garantir, é melhor mesmo construir um altar para Paulo Freire. Com café e cachaça.

Construção, construção, construção, esperançar. “Oh So PajaSSo” poderia até ser chamado de aula-espetáculo, ou espetáculo-aula, ou talvez seja mesmo uma peça de teatro sobre um professor que é palhaço e um palhaço que é professor. O professor Rodrigo, palhaço Bolota Fraldas Selvagens, traz consigo a experiência dessas áreas cujas distâncias são sempre elásticas – arte, cultura, educação – mas que talvez nunca devam estar tão longe e jamais totalmente apartadas.

Carismático e preciso, toma todo o tempo necessário para cada ação a ser realizada na cena, sem pressa mas também sem deixar o ritmo se arrastar, além de apresentar um timing cômico impressionante. Faz rir até quando aponta para uma questão real de “Oh So PajaSSo”: sem trilha sonora criada especificamente para a trajetória da obra, lá estão nos alto falantes as músicas mais clássicas para estudantes de teatro – as músicas do filme “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain” (e de fato, outra trilha poderia ser um ganho para o andamento de alguns momentos do espetáculo).

Diante do público, realiza toda a transformação necessária, preenchendo as distâncias entre o professor e o palhaço e o palhaço e o professor. Talvez seja possível afinar de forma mais precisa as ações de troca de roupa, mas já há ali algo de precioso: a seriedade de Zanetti enquanto maquia-se e se prepara para vestir a máscara. A Companhia Lá de Casa, nesta brincadeira que é muito séria, faz do teatro espaço de puro encantamento.

O assalto do século (Circo Guaraciaba, Votorantim)

Depois de apresentar-se nas outras edições do FESTÃO com o espetáculo de rua “O céu é a lona”, Alexandre Malhone, do Circo Guaraciaba, anfitrião do festival em 2022, agora encara o palco em “O assalto do século”, estreando no IV FESTÃO. Sai a estrutura de números tradicionais e a escuta ativa para lidar com as pessoas ao redor, entra um melodrama, inspirada na obra de Geovanny Pangol e Carlos Gallardo do Teatro La Muralla de Quito, Equador.

Dentro da dramaturgia, totalmente sem falas, onde é a corporalidade de Malhone e a trilha sonora que encaminham os rumos da narrativa, o artista encontra espaços para inserir gags nas movimentações da aventura daquele personagem-palhaço, solitário, melancólico, miserável. No Aquário, o cenário de “O assalto do século” acabou um pouco prejudicado, com a iluminação impedindo que o público pudesse ver em detalhes o rosto de Malhone, intérprete expressivo. Ainda assim, é sempre um imenso prazer divertir-se e até mesmo emocionar-se ao vê-lo em cena, atento e disponível.

O Rinoceronte (Coletivo TT9 Senac, Sorocaba)

Em se tratando de trabalho concebido dentro do ambiente formativo, “O Rinoceronte” carrega consigo uma série de circunstâncias atreladas às necessidades do Coletivo TT9 Senac. O diretor Hamilton Sbrana soube aproveitar-se do elenco numeroso para a composição de cenas e movimentações coletivas, de modo que a encenação ganha na variação de dinâmicas e no uso de todos os planos do palco.

Também, a presença do coro cria um interessante jogo com o discurso de “O Rinoceronte”, levantando questões em torno das relações entre indivíduos, cujos agrupamentos podem ser lidos a partir de categorias diferentes – do coletivo à massa, passando pela multidão – e a escolha pela dramaturgia de Eugène Ionesco é pertinente para os tempos que correm, diante de negacionismos radicais e manadas que, totalmente alheias à razão, acreditam estar certas em suas crenças e terrores.

Com meu maiô preto da marca Dior comprado em Montevidéu (Grupo de Teatro Ararapuca, Porto Feliz)

Uma mulher com um objetivo muito simples: deixar registrado seus desejos póstumos. O Grupo de Teatro Ararapuca apresentou no IV FESTÃO um causo sobre a morte: “Com meu maiô preto da marca Dior comprado em Montevidéu” traz uma dramaturgia muito bem elaborada, de Ivan Marcon, e fez o público gargalhar no Teatro Municipal de Votorantim. 

Na encenação dirigida por Gílson Geraldo, Rosana Diniz e João Brusco Pontes são personagens opostos em suas tensões e liberdades. Diniz e Pontes apresentam bom timing cômico e ótima sintonia. Há, por trás do humor, também, uma certa beleza em “Com meu maiô (…)”, ao abordar com uma eficiente simplicidade um tema sempre tão espinhoso.

Três Mambembes e o Porquinho Lino (Cia. Gepeto, Sorocaba)

Encerrando o IV FESTÃO, a Cia. Gepeto levou ao palco do Teatro Municipal de Votorantim a história de “Três Mambembes e o Porquinho Lino”. O pano de fundo dos três mambembes poderia ser mais bem aproveitado desde o início, oferecendo ao público um panorama mais amplo de quem são aquelas personagens para que a dramaturgia se desenvolva com maior organicidade e também se estabeleça uma empatia maior com aquelas figuras.

“Três Mambembes e o Porquinho Lino” traz em si diversas ideias, fagulhas, que devem ser melhor desenvolvidas para que o espetáculo chegue com maior potência ao espectador. Um pouco mais de tônus seria bem-vindo nas interpretações, tanto nos corpos como nas vozes – e o músico, escondido, poderia ser incluído na encenação, o que geraria novas possibilidades de relação entre as personagens. Na manipulação, é fundamental estar atento com a lida com os bonecos, desde quando eles surgem para os olhos do público até o momento em que deixarão de fazer parte da cena.

da insistência

Vinte e quatro obras, dez cidades. É importante notar que a maior abrangência regional vista dentre todas as edições está vinculada a uma circunstância primordial: os recursos viabilizados. No III FESTÃO, artistas de doze cidades puderam integrar a programação; é indesviável abordar o fato de que, para além de (importantes) apoios locais, a realização de um festival deste porte e relevância deve ser subsidiada com fomentos públicos. Na ocasião, um edital do ProAC permitiu que todas e todos os profissionais envolvidos fossem remunerados – como sempre deveria ser, mas sabemos que não: a Rede Teatro, ainda que com apoio da prefeitura de Votorantim, fez o IV FESTÃO acontecer por muita vontade e dedicação. Na raça.

Teatro para as infâncias, teatro adulto, performance, circo-teatro, audiovisual, palhaçaria tradicional, formas narrativas, populares, pós-dramáticas e até mesmo números de mágica: a potência do(s) teatro(s) está em sua diversidade; há espaço para todes no FESTÃO. O festival se constitui a partir das realidades locais, suas semelhanças e distâncias; e pouco a pouco passa a ser não apenas consequência destas, mas causa e motor para transformações e produção de futuros. Um festival se faz no caminhar.

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