teatro

laços políticos, poéticos e afetivos

olhar crítico sobre as obras do II FESTÃO — Festival Regional de Teatro, organizado pela Rede Teatro — Metropolitana de Sorocaba (Pilar do Sul, nov./2019)

[amilton de azevedo viajou a convite da organização do festival]

Durante todo o mês de novembro de 2019, a pequena cidade de Pilar do Sul e seus quase trinta mil habitantes viveram uma efervescência cultural: o Grupo de Teatro Escarafunchar realizou, com apoio da Secretaria Municipal de Cultura e o patrocínio de comércios locais, a VIII Mostra de Teatro e a III Mostra VIVA de Pilar do Sul, com espetáculos, exibição de filmes, exposições e outras atividades.

Para coroar a programação, o Escarafunchar abriu as portas de sua sede e da cidade para receber o II FESTÃO — Festival Regional de Teatro, realizado pela Rede Teatro — Metropolitana de Sorocaba. No último final de semana do mês, uma verdadeira maratona teatral: foram quatro apresentações no Espaço Escarafunchar na sexta, 29; no dia seguinte, os espetáculos começaram cedo na praça da igreja matriz de Pilar do Sul — foram três antes do almoço. Na sequência, a Secretaria de Educação da cidade recebeu nada menos do que nove propostas artísticas.

Dezembro começou com um encontro na chácara onde boa parte dos grupos acampou durante o festival — no domingo (01) de manhã, conversei com os participantes sobre os espetáculos. Ainda, a Cia. Espelunca, de São Carlos, convidada pela organização, apresentou seu Auto da Paixão e da Alegria, com dramaturgia de Luis Alberto de Abreu, para os grupos participantes do II FESTÃO.

Assim, em um final de semana, Pilar do Sul recebeu 17 apresentações teatrais — algumas delas, estreias — de grupos oriundos de oito cidades da região (nove, se incluirmos o grupo convidado). A Rede de Teatro, articulada por José Simões e Hamilton Sbrana — com a participação fundamental dos artistas dos coletivos locais — estabelece-se como uma iniciativa extremamente frutífera para o desenvolvimento cultural regional.

O II FESTÃO pode ser observado por diversas óticas. Há uma indiscutível relevância política na articulação dos grupos a fim de pleitear políticas públicas para seus municípios — a formalização de uma associação parece um passo natural para a Rede. A proposta de concentrar as apresentações em um único final de semana, se por um lado exaustiva, mostrou-se inteligente: grande parte dos coletivos envolvidos permaneceu na cidade durante todo o festival, acompanhando a maioria das apresentações de seus colegas.

Criam-se (ou reforçam-se; ressignificam-se) laços artísticos e afetivos — éticos e estéticos — nesta convivência e diálogo entre artistas e suas obras. Neste sentido, o que se verificou na programação foi uma enorme pluralidade de pesquisas de linguagens. Muitas vezes, parece que as estradas que ligam a capital ao interior de São Paulo são vias de mão única; assim, desenvolve-se um imaginário limitado quanto à produção artística do(s) interior(es). Há, sim, a permanência de obras regionalistas; mas há anseios outros, em diálogos diretos com as tantas possibilidades do teatro contemporâneo.

Deste modo, o presente texto visa organizar sucintas reflexões sobre todas as obras apresentadas no II FESTÃO. No diálogo de domingo, 01/12, muito foi dito; ainda assim, é de extrema relevância registrar em palavras a produção destes grupos — alguns são os únicos coletivos teatrais atuantes em suas cidades (como é o caso do Escarafunchar, capitaneado por Guto Carvalho, em Pilar do Sul).

Clownfé, da Aclowndemia (Sorocaba)

Abrindo o festival, no charmoso Espaço Escarafunchar, a trupe de palhaços de Sorocaba organizou-se a partir de um curso de formação em palhaçaria. É uma iniciativa fundamental; os alunos mantém-se em pesquisa e, assim, a cena local é fomentada e oxigenada por estes novos artistas. Em Clownfé, a ingenuidade clownesca é inserida em uma situação: um café, cuja dona aguarda a visita de um crítico que lhe dará mais uma estrela pelo atendimento exemplar. No entanto, clientes indesejados continuamente a importunam.

Há a presença de números tradicionais, costurados pela dramaturgia situacional. Na maior parte do tempo, o jogo se dá entre dois atuantes — por vezes, estrutura-se uma dinâmica clássica, entre Augusto e Branco, ainda que em constante trânsito. Clownfé traz palhaças e palhaços com brilho e sorriso nos olhos em uma cena leve e divertida com plot twists mais ou menos óbvios, mantendo o público atento ao desenvolvimento da situação.

Lugar de Fala, do Grupo de Teatro Escarafunchar (Pilar do Sul)

Mais do que uma cena, Lugar de Fala é um projeto do grupo Escarafunchar extremamente mutável: organizando-se em propostas cênicas relativamente curtas, temas que atravessam os atores/performers são formalizados e servem de ponto de partida para discussões que acontecem após as apresentações. Em cada abertura de processo, outras pessoas participam e outras questões são debatidas.

Não se trata de uma proposta que dialoga diretamente com o conceito de lugar de fala, mas sim do entendimento do espaço cênico como ágora política, como um lugar para se falar de conteúdos pertinentes ao artista — e à sociedade. Assim, desenvolve-se uma operação dupla: além de gatilho para reflexões e debates, há também a necessidade da pesquisa do artista não só em relação ao tema, mas também das possibilidades de formalizar tal discurso em um ato cênico.

O que se verificou nas quatro apresentações dentro do II FESTÃO foi precisamente esta pluralidade impulsionada pelo formato do projeto, tanto na forma quanto no conteúdo. Primeiro, o (nem tão) simples ato performativo de “desmontar-se” de uma figura queer, que tira sua maquiagem e também suas roupas pode propor discussões sobre a liberdade de ser quem se é. Depois, uma complexa construção que articula narração e ação trazendo uma história em primeira pessoa sobre abuso sexual infantil, sobrepondo no corpo do ator duas personagens de modo extremamente aflitivo, com uma violenta imagem encerrando a ação.

Na sequência, fatos que aproximam séculos de violências contra a mulher tornam-se um mural escrito em giz na parede e uma ação de lavagem consolida uma afirmação contundente sobre o feminismo. Por fim, a violência policial no Rio de Janeiro e a tentativa de localizar as balas perdidas em nosso próprio corpo.

Quatro propostas extremamente diversas, mas que encontram em Lugar de Fala um espaço de experimentação formal livre para discutir o que nos aflige no mundo contemporâneo. Por conta da programação do festival, não houve debate neste dia; mas inquietações permaneceram reverberando, sem dúvidas.

Gavetas do Corpo, da Camarim Cia. de Teatro (Sorocaba)

Ainda que apresentada com algumas limitações relativas à técnica — como iluminação e cenografia — o trabalho da Camarim fascina pelas escolhas estéticas. Em diversos quadros com potências imagéticas de ordens muito distintas, a manipulação de bonecos misturava-se ao teatro físico; atmosferas simbolistas dialogavam com interpretações expressionistas e surgiam pitadas de surrealismo. Gavetas do Corpo traz, a partir da construção precisa de figuras com máscaras e tecidos que contracenam com o elenco, momentos de uma materialidade sufocante e outros de incrível poesia.

Na dramaturgia cênica, organizada em quadros polissêmicos, há um inevitável risco de certo hermetismo. Porém, produz-se um encantamento — e até certo fascínio — na lida dos intérpretes com a materialidade cênica e suas movimentações. Há um efeito quase mágico em alguns momentos, que possibilita que cada espectador desenvolva sua própria leitura ao permitir-se atravessar por estes corpos — humanos e não-humanos — que se relacionam organicamente. Cabe ao público completar o poema escrito em comunhão com a cena.

Manual de Sobrevivência, da Trupé de Teatro (Sorocaba)

Iniciado na rua em frente ao Espaço Escarafunchar, a noite escura da esquina vazia já serviu de aperitivo para a atmosfera do espetáculo. Na proposta de encenação de Manual de Sobrevivência, o público parece inserido em um conto de terror. A dramaturgia costura uma reescrita de mitologias e fábulas — como Chapeuzinho Vermelho — a dados de nossa realidade contemporânea.

No prólogo, uma atriz enuncia: o espetáculo fala de dramaturgias-vidas. Ficção e depoimentos se entremeiam na composição das personagens, sobreviventes em um momento histórico de verdadeira guerra. Mulheres buscando resistir e existir juntas, enfrentando uma matilha furiosa que as ataca, sequestra, mata.

Os lobos maus passam longe de ser metáfora ou símbolo aqui. Na ambientação proposta dentro do Escarafunchar, nichos de iluminação recortavam as narrativas daquelas mulheres que encontraram um abrigo — não apenas no espaço, mas fundamentalmente umas nas outras. Em uma escolha interessante da Trupé, a personagem criança nunca aparece: é sempre uma voz atrás de uma cortina — exibir uma atriz adulta interpretando uma menina seria pouco verossímil; além disso, o fato de apenas ouvirmos o que se passa no ambiente onde ela está corrobora com a atmosfera assustadora de Manual de Sobrevivência.

Aos poucos, todas as personagens contam suas histórias — assim como as atrizes narram acontecimentos relacionados à temática da violência de gênero, considerando a interseccionalidade das opressões. Nas cenas, a materialidade de certos objetos manuseados por elas se destaca. Estas mulheres, tias que cuidam junto da pequena garota, vão a partir do compartilhamento de suas vivências construir a armadura que protegerá a criança quando elas já não puderem fazer isso.

No ato final do espetáculo, os elementos aparentemente simples se ressignificam em uma imagem-síntese de muita potência. A composição remete à figura de um orixá; como se toda mulher, face às violências enfrentadas diariamente, carregasse consigo a força de uma Yabá.

Coisas do Interior, da Cia. Teatral Sarapós (Sarapuí)

Abrindo a manhã de sábado na praça central de Pilar do Sul, uma obra que busca resgatar narrativas regionais em uma linguagem teatral popular. No grupo da pequena Sarapuí, emerge um trabalho eminentemente formativo. A grande maioria do elenco é composta por garotas e garotos jovens, muitos provavelmente iniciando suas experiências no teatro dentro da Sarapós.

A companhia trouxe um trecho de Coisas do Interior; um cortejo funerário de onde emergem figuras consideradas típicas da região. Ainda que talvez algumas delas sejam pouco verossímeis, é possível considerar que haja uma grande identificação do público da Sarapós: como se, na cena, pudessem ser contadas as histórias da cidade.

No trabalho com os tipos, seria um caminho interessante para o grupo mergulhar em técnicas teatrais que permitam um maior aprofundamento nas composições — algumas figuras seriam facilmente compreendidas dentro de máscaras da commedia dell’arte, por exemplo.

Também é importante considerar que, dentro de linguagens populares, muitas vezes existem representações tradicionais que podem ser questionadas — é o caso da figura do homossexual, que surge apenas como alívio cômico, incorrendo em um humor homofóbico. Sempre vale a pena repensar como estão sendo construídos — e a serviço de que — os tipos presentes na cena. Há muitas possibilidades de ressignificar de forma extremamente positiva certas tradições.

Trambicus — a Tragédia do Trombone Triunfal, da Trupe Tripa Trombose (Mairinque)

O forte sol fez com que muitos dos espectadores que acompanharam Trambicus se refugiassem sob as árvores próximas ao espaço cênico — o que comprometeu um pouco a fruição, visto que as sombras não contemplaram a área localizada bem em frente à ação.

A dupla de palhaços transitam entre números clássicos e cenas sem o nariz onde a situação que se desenvolve remete, de certo modo, à Balada de um Palhaço, de Plínio Marcos. Porém, aqui, os dois são explorados por um patrão ausente, o que os faz pensar sobre o ofício.

Na apresentação, o que se verificou foi o desafio da proposta: como jogar com este entrar e sair da máscara do palhaço sem perder o tônus nem a dinâmica da encenação? As possibilidades apontadas serão melhor aproveitadas quando houver uma costura mais apurada da dramaturgia dos momentos onde o centro da obra torna-se a crítica social.

Há um caminho muito interessante a ser percorrido pelos artistas que propõem Trambicus; mesmo que a cena ainda esteja um tanto incipiente, a ideia carrega consigo muita potência. Considerando a qualidade da dupla — e a beleza do momento final do trabalho — é de se esperar que o desenvolvimento da proposta renda frutos.

O céu é a lona, de Alexandre Malhone (Votorantim)

Oriundo de família circense — do importante Circo-teatro Guaraciaba — Malhone propõe um solo de palhaçaria ao ar livre; conforme o nome já diz, O céu é a lona. Antes mesmo do início da apresentação, cabe destacar o engajamento do palhaço para entreter o público já presente e convidar mais pessoas; Malhone, ágil e atento, tem uma grande capacidade de escuta para interagir com os tantos estímulos que a rua pode oferecer.

Soma-se à sua experiência o seu carisma, que sustenta o encantamento dos espectadores nas ações daquela figura, simultaneamente ingênua e ácida. Malhone aproveita tudo: até mesmo o fato dele próprio operar o som na cena torna-se gag e faz rir. Aliás, é louvável verificar o movimento — presente em outras apresentações com a máscara do palhaço — de refletir acerca do que e com quem se ri, além do constante lembrete da seriedade do ofício, do ser artista.

Os fuzis da senhora Carrar, do Teatro Escola Mario Persico (Sorocaba)

Abrindo as apresentações da tarde de sábado, na Secretaria de Educação de Pilar do Sul, um dos poucos textos clássicos encenados no II FESTÃO. A dramaturgia de Bertolt Brecht foi bem aproveitada pelo jovem grupo de Sorocaba. Ao utilizar como prólogo o poema Intertexto, do mesmo autor, o espetáculo já localiza a intencionalidade do discurso de Os fuzis da senhora Carrar — além da presença da canção Bella Ciao durante a entrada de público, que reforça ainda mais o que se pretende colocar em cena.

É uma maneira eficaz de, desde o início, introduzir ao público quais as temáticas em jogo. Na cenografia, algo entre uma casa e uma barricada se estabelece. Nas ações, escolhas inteligentes — como o lavar as mãos de um dos personagens, que cessa assim que ele toma partido — e outras um pouco menos definidas.

Nas interpretações, se por um lado existem propostas interessantes, como o fato de um ator interpretar — com precisão, sem buscar maneirismos — a protagonista feminina, por outro cabe refletir acerca da comicidade em algumas figuras. É um equilíbrio delicado entre o divertimento e o exagero na construção.

Há um pensamento visível acerca da hierarquização das relações presentes nos movimentos e na composição das cenas de Os fuzis da senhora Carrar. É prudente, neste sentido, considerar quando a marcação pode se tornar excessiva; o que não chega a comprometer a encenação.

O espetáculo encontra momentos preciosos de não apenas incluir o espectador, mas convocá-lo à participação. Ao escolher inserir a referência direta ao Brasil contemporâneo apenas nos momentos finais, potencializa-se a ideia de Augusto Boal de que a proposta brechtiana é de uma poética da conscientização. Tomadas as decisões das personagens e compreendido o mundo como passível de transformação, cabe ao público refletir sobre as relações entre o que aconteceu no palco e o que está acontecendo ao nosso redor.

Narrativas despretensiosas e não governamentais, do Coletivo Narciso (São Roque)

A encenação, com criação coletiva, possivelmente é uma boa síntese de uma pós-modernidade memética. Composta por diversos fragmentos que navegam por questões muito pertinentes ao debate das relações líquidas, estas Narrativas despretensiosas carregam consigo, sim, alguma pretensão.

Uma pretensão desta geração que busca experimentar formas para trazer à tona debates que lhes são caros — evidência disso é a centralidade das questões identitárias na obra. O desafio parece mesmo ser a compreensão da distância que há entre um Eu e um Outro; e, talvez decorrente disso, como partir de um sujeito e chegar em um coletivo.

Permeia todo o espetáculo uma ironia patética, inserida dentro de uma energia clownesca. As maquiagens, os figurinos e as atitudes do elenco — principalmente quando agem como um coro — ressaltam este pretensioso sarcasmo frente a tudo que os cerca. Neste sentido, cabe uma atenção específica à forma de alinhavar as reações expressivas deste coletivo diante dos acontecimentos — se é a risada histérica, que todos riam; se é o sorriso forçado, que se sustente.

Sustenta a encenação uma dramaturgia performativa que abusa da materialidade cênica. Bolos, melancias, balas: é essencial buscar a radicalidade dentro das escolhas feitas a fim de efetivamente levá-las ao limite para que assim algo se transforme; também, cabe refletir sobre a pluralidade de leituras que podem ser feitas pelo público a partir de tais propostas.

No sentido da excessiva materialidade, que aos poucos vai cobrindo todo o palco, é visível que há, na própria movimentação sobre esses resíduos, um risco real. Talvez ele possa ser concretamente incorporado à performatividade já tão presente na obra.

A encenação de Narrativas despretensiosas e não governamentais inicia-se tal qual seu nome indica. No caminho das cenas, surge aos poucos alguma pretensão e o governo vai sendo incluído. Pós-dramática, aponta em sua trajetória a construção de fragmentos de indivíduos — reais e ideais; concretos e projetados — que partem deles próprios, do outro e da sociedade. Na agitação da trilha sonora, reflete-se a velocidade do meme. A peça do Coletivo Narciso é quase a presentificação de um viral.

A incomum arte de não prestar pra nada, da Nossa Trupe Teatral (Tatuí)

A palhaçaria, aqui, encontra um tradicional jogo entre Augusto e Branco. É impressionante o timing dos dois artistas, além da química entre eles. Além disso, a apresentação conta com uma dramaturgia muito bem amarrada, que consegue manter o público inteiramente capturado por suas ações e gags.

Mesmo quando algo não corre exatamente conforme o planejado, a escuta dos palhaços está sempre atenta para os improvisos necessários. Como um bom espetáculo desta linguagem, os comentários junto à plateia são constantes. Na apresentação do II FESTÃO, foi curioso e divertido observar também a honestidade desta incomum arte: frente à imprevistos, sobraram risos — da plateia e dos próprios intérpretes — que não diziam respeito apenas aos insucessos tão presentes na máscara do palhaço, mas algumas vezes a um (breve, pequeno e solucionável) fracasso dos próprios artistas.

O doente imaginário, da Zéfiros Cia. de Teatro (Salto)

Outra companhia a trazer um texto clássico para o II FESTÃO, a Zéfiros apresentou uma encenação com figurinos luxuosos para a comédia de Molière. Com direito às três batidas clássicas do dramaturgo antes do espetáculo começar e à presença do próprio na figura de um violinista comentador das cenas, uma série de escolhas causa estranheza.

O humor da montagem encontrava-se, fundamentalmente, em cacos inseridos pelo elenco. Considerando a distinção — longe de pressupor hierarquias entre tais formas cênicas; apenas utilizando a nomenclatura comum — entre alto e baixo cômico, cabe refletir acerca do porquê montar uma dramaturgia representante do primeiro gênero e recheá-lo de comentários pertencentes ao segundo; talvez coubesse melhor à proposta um texto de comédia popular.

Mesmo neste caso, há diversos cacos incluídos nos diálogos que não encontram nenhuma justificativa dramatúrgica para lá estarem, tendo apenas a função de fazer o espectador rir. É difícil não apontar para a gravidade de algumas escolhas execráveis — que, ainda que pudesse ser a intenção da encenação, não se efetivam enquanto crítica aos personagens, mas sim, geram uma irresponsável comicidade.

Há comentários preconceituosos das mais diversas ordens. Qual a necessidade de inserir um dado afeminado na figura do filho do médico se não para extrair disso um humor homofóbico? Não há problemas no fato de que um homem interprete Béline, esposa de Argan, mas por que a ação de tirar a peruca e falar com uma voz “masculina” se não para inserir um comentário transfóbico do protagonista? Por fim, mesmo estando todo o elenco com maquiagens de época, ou seja, um pó-de-arroz cobrindo todo o rosto, é no mínimo estranho — para não dizer racista — notar que o mesmo Argan se refere a Cléante como “beiçudo”, visto que é possível perceber que se trata de um intérprete negro.

É compreensível que se busque uma cumplicidade maior da plateia, mas é fundamental refletir acerca das motivações do humor. Com quem — e de que quem — estamos rindo? A tentativa da Zéfiro pode ter sido a de incluir certos comentários de forma crítica, a fim de gerar reflexão e repúdio das personagens onde se localizam os cacos citados acima; porém, há de se ter uma grande responsabilidade acerca de como isso se efetiva — ou não — na cena.

Mochileiro de decepções, da Cia. Sevastra de Teatro (Sorocaba)

O jovem Epitáfius se despede de sua mãe para peregrinar pela imensidão de Pindorama. O espetáculo desenha a trajetória de uma vida em processo de descoberta. Um protagonista que resolve caminhar por aí se encontra com diversas figuras, de muitas origens, histórias e presentes. A narrativa é acompanhada pela música ao vivo — os integrantes da banda (Gabriel Casagrande, Kethyllin Souza e Luiz Melo) também vão ao microfone e fazem comentários sobre a ação. Em cena, dois atores: um vive Epitáfius (Felipe Gadaian); seu companheiro (Pablo França) corporifica os tantos seres que cruzam sua trajetória.

Neste sentido, há um trabalho preciso de interpretação, atenta aos detalhes, nas composições de França; a escolha de uma maior formalidade contrasta com a organicidade de Gadaian, intérprete carismático.

Com uma dramaturgia em verso, a história carrega um quê de cordel — ainda que por vezes haja um certo malabarismo para compor as rimas, cuja sonoridade é muito bem-vinda. Assinada por França, também diretor de Mochileiro de decepções, traz uma narrativa cativante e de muita poesia.

A música — tanto como acompanhamento quanto como dramaturgia — é também essencial. Quando Gadaian vai ao microfone, Epitáfius canta muitas histórias em uma só. Surge em suas palavras a compreensão do inacabamento da vida; de como nosso passado não nos define e seguimos em constantes construções e desconstruções, erros e acertos.

Mochileiro de decepções é uma escolha curiosa de título para a obra. Pois ainda que talvez alguns dos presentes não sejam exatamente símbolos de esperança, o que Epitáfius carrega na bagagem parece ser pouco decepcionante. Pelo contrário; o espetáculo traz uma sensação emocionante no que se estabelece como uma declaração de amor à arte. Viajar mundo afora para conhecer o mundo dentro. E viva o caminhar, essa possibilidade infinita de encontros transformadores!

O grande pequeno circo do Berinjela, da Nativos Terra Rasgada (Sorocaba)

Na praça em frente da Secretaria de Educação de Pilar do Sul, uma catita lona já estava armada. O Palhaço Berinjela mostra que não é preciso muito para construir uma atmosfera circense: em seu grande pequeno circo, compunha habilmente as situações que sustentavam as gags. Berinjela aproveitou bem a presença de crianças em sua plateia — até mesmo quando uma garotinha insistia em roubar a cena.

O público engajou-se nas ações do palhaço e foi uma excelente escada para seus números e piadas. Berinjela insere o ato de passar o chapéu na dramaturgia da apresentação em um importante discurso; é uma maneira inteligente de chamar atenção para a necessária valorização do artista. Também emociona a construção de seu clímax, quando o palhaço mostra seu primeiro nariz e fala sobre sonhos. (Além disso, sempre que me lembro de um de seus truques fico quebrando a cabeça tentando decifrá-lo).

A Brava, segundo a Companhia de Eros, da Cia. de Eros (Mairinque/São Roque)

Uma bela homenagem não apenas à Joana D’Arc, mas também à Brava Companhia, de São Paulo. A Cia. de Eros parte da dramaturgia de A Brava para construir um espetáculo que remete, enquanto ideia, também à montagem de Corinthians Meu Amor pelo grupo paulistano — no sentido que também há uma apropriação na homenagem (A Brava homenageou o Teatro Popular União e Olho Vivo).

Apresentado na praça em frente à Secretaria de Educação de Pilar do Sul, A Brava foi uma estreia em um espaço diferente daquele da concepção da obra — a Cia. de Eros apresenta seus espetáculos em uma estação de trem abandonada em São Roque, permitindo uma disposição interessante onde os trilhos tornam-se espaço cênico.

Desse modo, houveram algumas questões pontuais muito por conta deste fato: era uma apresentação de teatro na rua, não de teatro de rua. Ainda assim, já se pode verificar as potências na encenação. O momento onde surge pela primeira vez o refrão “a vida pede coragem” destoa positivamente do tônus presente nos diálogos. É perceptível também a força nas escolhas formais relacionadas à inserção de comentários vinculados ao nosso contexto atual.

A Cia. de Eros compôs uma encenação sólida, com afinações possíveis em alguns campos, como por exemplo o equilíbrio no trabalho de interpretação, considerando a trajetória da(s) Joana(s) — as cenas de transição, quando outras atrizes passam a interpretar a protagonista, são momentos de muita força e beleza. Presente na dramaturgia, a ideia da imaginação como o lugar onde se escuta Deus traz uma materialidade política fundamental que sustenta todas as metáforas contemporâneas ali sugeridas.

Poesia que espanca, de Uma de Nós (Sorocaba)

Espalhadas pelo teatro, quatro mulheres. Três contam suas histórias de forma entremeada — a quarta, canta uma canção de amor. Talvez essa seja a primeira Poesia que espanca. Em poucos segundos, as escolhas estéticas já deixam evidente o tema que a companhia Uma de Nós está levando à cena.

A importância do conteúdo é um ponto pacífico: a violência doméstica é uma realidade aterradora em nosso país, onde as muitas faces da violência de gênero estão presentes no cotidiano da maioria das mulheres. Cabe à coletiva refletir acerca de algumas escolhas formais. Na construção das narrativas, por vezes parece haver uma opção pela manutenção de um mesmo tom em cada uma das personagens — ou performers.

A forma que a dramaturgia se desenvolve parece sugerir, em momentos, que se tratam de depoimentos, principalmente daquelas que contam suas histórias de maneira mais orgânica, sem grandes rompantes que resvalam em uma representação que corre o risco de ser pouco crível.

Deve-se considerar que dentre o público há pessoas mais ou menos conscientes desta realidade e dos tantos debates que vêm acontecendo — seja acerca de políticas públicas ou em demais reflexões sobre pensamentos preconceituosos e atitudes machistas. Surge aí um desafio interessante para as Uma de Nós: buscar uma maneira em que a forma artística também comunique de maneira cristalina o horror e a verdade que há em cada uma daquelas histórias — e a reafirmação de que cada uma que passa por aquilo é “uma de nós”, na construção de um senso coletivo de conscientização feminista, tão necessário aos nossos tempos.

Na encenação de Poesia que espanca, imagens elaboradas e sintéticas que fazem o diálogo entre forma e conteúdo estão presentes; os adereços e figurinos, relacionados às trajetórias das personagens, sangram. Nas relações narradas, as flores pouco a pouco tornam-se espinhos.

Entre(laços) — um documentário cênico, da ST DNC (Tatuí)

O espetáculo que encerrou a noite do II FESTÃO trouxe uma espécie de documentário performativo. No início, as movimentações e o jogo com a materialidade cênica — como se o público testemunhasse o nascimento de corpos-lixo e o subsequente desespero da limpeza — parecia carregar uma potência simbólica pouco compreensível. Aos poucos, seu discurso foi desvelando-se em momentos de compartilhamento de histórias pessoais, sejam próprias ou de outrem, seja na voz dos dançarinos-performers, seja em áudios e até mesmo fotografias exibidas no que desenhava-se como um memorial.

Para além das palavras, em Entre(laços) os corpos pulsantes dançam o que é impossível de ser dito. São corpos que combatem, corpos que pesam, corpos que são leveza. Mesmo quando os três estavam em sintonia dentro de uma coreografia, o que chamava mais atenção era a vivacidade dos performers; as intenções por trás daqueles gestos interessavam mais do que o que eles representavam para além dos próprios artistas.

Depois, ao contar suas histórias, tornava-se possível estabelecer mais leituras a partir do que se via. As tantas músicas e atmosferas emocionam e capturam o público, que acaba lançado também às próprias vivências e memórias. A depressão parecia dar o tom, mas não era o único tema.

A companhia de performance STDNC soube lidar com a delicadeza de tais questões — seria impossível não haver alguma espécie de momento catártico ao final. Para isso, o grupo distribuiu pequenos potes de tintas para o público. E convidou todas, todos e todes a celebrar, colorir e, finalmente, construir laços. Ainda que momentâneos, ainda que efêmeros.

Foi de um oportuno simbolismo ser esse o encerramento do II FESTÃO. Pois naquele breve e intenso final de semana, laços afetivos, políticos e poéticos se firmaram; alguns, talvez, duraram apenas um instante, uma apresentação, uma madrugada. Outros, sem dúvida irão perseverar: viva a Rede Teatro — Metropolitana de Sorocaba! Vida longa a encontros de articulação regional como é o FESTÃO. Parabéns aos envolvidos e mais uma vez agradeço pelo convite, pelo privilégio de ver e a confiança de ouvir e estar perto. Seguimos; afinal, a vida pede coragem!