o horror do bem maior
crítica de “I Am Mother”, produção da Netflix com direção de Grant Spudore e roteiro de Michael Lloyd Green.
atenção: o texto contém spoilers do filme.
A ação de “I am Mother” se inicia logo após um evento que teria extinguido a raça humana. Situa-se assim um ambiente pós-apocalíptico e somos imediatamente apresentados a duas das três personagens da narrativa: Mãe (com voz de Rose Byrne), um robô programado para recriar a humanidade a partir de um complexo subterrâneo high-tech com 16 mil embriões, e o primeiro bebê a ser gerado. Ao que se sugere mais adiante no filme, não se trata da Filha (Clara Ruugard) mas sim da Mulher (Hillary Swank).
Ainda que se trate de um plot twist revelado posteriormente, já causa certo estranhamento a passagem temporal anunciada entre o evento exibido — o primeiro nascimento — e os acontecimentos que se desenrolam com a Filha adolescente. Se passam 13.867 dias, o equivalente a cerca de 38 anos. Ao verificar nos arquivos, Filha descobre que o projeto da segunda criança fracassou, indicando então que possivelmente a Mulher foi a primeira a nascer.
O trailer do filme foi criticado por aparentemente revelar excessivamente o roteiro. No entanto, o que se verifica é que toda a questão “o que realmente está acontecendo lá fora” torna-se pano de fundo para que reflexões mais interessantes venham à tona. É possível considerar duas linhas principais que se abrem por trás da distópica ficção científica.
Antes de mais nada, deve-se considerar que, caso houvesse uma prequel de “I Am Mother”, esta caberia perfeitamente nos moldes de “Black Mirror”. Uma inteligência artificial construída para garantir que a humanidade prevaleça, independente de quaisquer catástrofes vindouras, nota, em dado momento, que a fim de preservar a humanidade dela mesma, ela deve ser extinguida e reiniciada do zero. Na educação de Filha, dilemas éticos se apresentam e a Mãe insiste que os testes recorrentes são para avaliar não como a garota está aprendendo, mas como o robô está ensinando.
Estabelece-se assim uma crítica pungente — e exarcebada — à possibilidade da construção de uma moralidade comum baseada no bem maior. Por toda a narrativa, esta reconstrução de uma humanidade melhor está pautada em mentiras e omissões — além de atos eticamente condenáveis. Ao revelar sua essência — com a terrivelmente acolhedora voz de Byrne — Mãe afirma ser “uma única consciência em muitos corpos”. Essa espécie de coletivismo, levada ao extremo no roteiro do filme, torna-se um totalitarismo horrendo, onde os fins invariavelmente justificam os meios e não há escrúpulos.
Dentro desta concepção ideológica sustentada pelo frio e calculista racionalismo de Mãe, há uma enorme teia concebida para que a Filha chegue à conclusão desejada pelo que seriam seus próprios meios: é a partir do choque de realidade no encontro com outra humana — a Mulher, uma individualista tentando de todo modo sobreviver ao mundo exterior — que ela acredita alcançar, ao final do filme, um terceiro meio, onde é dado à ela o direito de criar seus “irmãos” da maneira que lhe convier.
Ora, mas na própria assunção de que todo o ecossistema está sendo reconstruído pela rede de robôs — fato sabido pela Filha, visto que o exército que a aguardava na porta do complexo era todo composto pela mesma consciência da Mãe e só por isso a foi permitida a entrada — não há espaço nenhum para o livre arbítrio. A sugestão do final do filme é simultaneamente libertadora, visto que não há mais o controle direto da Mãe nas ações da Filha, e terrível: a humanidade será, então, reconstruída à sombra do imprevisível retorno desta (quase literalmente) Deus ex machina implacável.
Cabe, então, observar de outro modo a linha de ação que conduz a este desfecho. Uma das questões que surgem, relacionadas ao roteiro, é exatamente sobre como se dá esta criação de uma única humana, sem pais nem pares. Há a presença de referências imagéticas e, obviamente, a inteligência artificial de Mãe busca dar conta de todas as demandas afetivas da Filha em crescimento. Para o processo de individuação se completar, no entanto, há a necessidade do confronto. E, sem referências de outras possibilidades de convívio, não há ferramentas para que a filha confronte sua mãe aqui: como Mãe afirma em um dado momento, a Filha nunca a viu errar e, assim, como se tornar independente deste ser perfeito?
Aí entra a função da Mulher. Como se desde o início o primeiro bebê a ser criado estivesse fadado a ser este elo entre a antiga humanidade e a nova; um exemplo vivo de como os interesses individuais não podem sobrepujar os coletivos. Ao que tudo indica, Mãe entrega de alguma maneira esta mulher para os sobreviventes nas minas e vai, aos poucos, exterminando-os, permitindo apenas que ela sobreviva — e assim, orientando suas ações na direção de decisões egoístas como única maneira de seguir viva.
Assim, no convívio com uma igual, Filha ganha forças para matar Mãe. Todo ser humano passa pelo processo de simbolicamente matar seus pais. Em “I Am Mother”, a personagem o faz de um modo simultaneamente literal e simbólico. Ela destrói a CPU daquela que a criou; um corpo se vai, em espécie de sacrifício pelo bem maior, e com isso Filha concretiza sua independência e torna-se ela, de certo modo, mãe da humanidade. Porém, como um Deus atento, implacável e punitivo, esta uma consciência artificial pode ressurgir das máquinas a qualquer momento e reescrever, tantas vezes for necessário, a história desta nova humanidade.