teatro

habitar travessia

relato crítico a partir de Peça Invisível #1 – Nós não estamos em nenhum outro lugar, criação de Carolina Mendonça, Miguel Caldas e Sofia Boito, que assina a concepção do projeto.

Tu escreves um livro com tinta invisível. Por que fazes isso? (Vicente Cecim)

O sol está se pondo. Deito-me com fones de ouvido. Está frio, pego um cobertor. Relaxo. Aperto o play e começo a escutar a primeira peça invisível de Sofia Boito, realizada junto à Oficina Cultural Oswald de Andrade. Ao lado de Boito, Carolina Mendonça e Miguel Caldas assinam a criação de Nós não estamos em nenhum outro lugar. Mas onde é que estamos, mesmo?

Desde meados de 2020, coletivos e artistas vêm debruçando-se nas diversas lidas possíveis com a criação em confinamento. Nos últimos tempos, graças ao auxílio emergencial proporcionado pela Lei Aldir Blanc, verificou-se uma profusão de obras criadas (ou adaptadas) para o ambiente online. 

O campo sonoro não foi esquecido: para ficarmos em alguns exemplos, a companhia brasileira de teatro lançou o projeto Escutas Coletivas, inicialmente com Maré (leia a crítica do Satisfeita, Yolanda? sobre o trabalho), enquanto a Santa Companhia mergulhou no universo dos podcasts com o bemdita!, cuja programação abarca de entrevistas a leituras dramáticas, passando por pílulas poéticas.

O projeto concebido por Boito também parece emergir muito em diálogo com o contexto das impossibilidades contemporâneas. Mas a primeira de suas peças invisíveis opera muito além dele. A peça sonora de cerca de trinta minutos é um convite à travessia. O texto, quando surge na densa atmosfera que se constrói na fluidez de um mar, é como uma onda; margens de um rio cuja voz é a corrente por onde podemos, se assim desejarmos, navegar. 

Na criação sonora de Caldas, há algo que inicialmente pode remeter a procedimentos de meditação. São timbres agudos e uma confluência harmônica de elementos que induzem a um estado de relaxamento. Mas há uma complexa narrativa que se apresenta no movimento da experiência.

Na dramaturgia que opera nas camadas do silêncio, da voz e das tantas sonoridades, o que parece se estabelecer como condução é precisamente a disposição do ouvinte a aceitar aquela proposta; a embarcar em uma viagem que, em muitos momentos, remete a um estado de transe.

São paisagens que se desenham no encontro de obra e espectador; se nós não estamos em nenhum outro lugar, habitamos precisamente esta travessia. Ouço algo sobre sereias e seres celestes. Mergulho nestes cantos, talvez na busca deste aqui que não é nenhum outro mas que se torna tantos.

Depois das águas, pareço convidado a prestar atenção no lugar-eu. Chego a confundir sons do meu próprio corpo com os que vêm dos fones. O ínfimo e o infinito de dentro e de fora. Volto a estar em movimento. Já não sei mais em qual embarcação. Sigo dentro do fluxo encantatório das palavras, sons e ruídos. 

Em certos momentos, o enquadramento ficcional que construí em diálogo com a narrativa invisível se rompia. Noutros, já não sabia dizer se estive acordado nos minutos anteriores. Os sons da travessia por vezes me fizeram pensar estar só. Mas então, a voz deixa de ser um sussurro ao pé do ouvido e se torna coro. De algum modo, talvez seja disso que se trate. Nós não estamos em nenhum outro lugar: onde quer que seja, estamos todos agora.