é só em muitos que se pode transbordar
crítica de “Gota”, performance de Elilson Nascimento
Um balde de plástico vermelho made in Brazil com capacidade para 13,6 litros é o objeto-guia para uma quase deriva, uma caminhada-busca por quem estiver bebendo água ou trabalhando com água. A caminhada só se completa quando o recipiente estiver transbordante com as águas doadas pelos transeuntes, gota a gota, com as próprias mãos. Toda a água coletada é revertida em ações de lavagem, de escrita e de exposição oral.
Gota, de Elilson Nascimento, parte deste programa performativo, desenvolvido por ele no âmbito de uma disciplina da pós-graduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde o performer, natural de Recife, formou-se Mestre em Artes da Cena. Seu relato/ensaio sobre o processo torna-se também obra. Conforme verifica-se no texto, sua “quase deriva” transformou-se no fazer e no andar dos tempos.
Se no primeiro experimento Elilson usou a água coletada para lavar uma bandeira do Brasil “até que o lema positivista ficasse nebuloso: quase escrito, quase apagado, sem ordem, ainda com progresso, turvamente”, ações violentas de outros fizeram com que o ato de lavagem se voltasse para outro objeto: uma parede pichada com dizeres violentamente homofóbicos em um banheiro da UFRJ.
Concreta e simbólica, Gota nasce de um transbordamento: a assunção de que basta. Que nos perdoe Chico Buarque, mas não “pode ser a gota d’água”: já a foi, há muito. Além das palavras na parede, Diego Vieira Machado havia sido mais um nome a tornar-se estatística. O jovem homossexual foi brutalmente assassinado dentro do campus do Fundão da UFRJ; seu corpo foi encontrado na noite do dia 02 de julho de 2016.
Elilson, então, reinventa seu trajeto e ressignifica seu caminhar, de balde em mãos, na semana seguinte do assassinato, no dia 07 de julho. Não mais o centro do Rio de Janeiro; agora, dentro da universidade, as relações se transformam. Entre dois banheiros pichados, um antes e outro depois do crime de ódio, dentro do campus da Praia Vermelha também da UFRJ, o performer então estabelece sua rota e vai em busca de tantas águas quanto possível.
Estas primeiras ações tornaram-se base do relato que Elilson carrega consigo junto ao balde ao refazer a performance em outros lugares e contextos. Estabelece-se assim um jogo entre narração e performatividade que gera outras potências para o trabalho. Em sua apresentação na galeria Vermelho, em São Paulo, dentro da programação da 15ª mostra de performance arte VERBO, o ato que finda a ação deixa de ser a lavagem solitária descrita em seu texto e torna-se a exposição oral; um compartilhamento.
O performer não abandona seu programa performativo: Gota inicia-se muito antes do horário estipulado. Um trajeto é feito a pé e pessoas são interpeladas e convocadas a colaborar com quanto for possível — ou desejável — de suas águas de beber ou de trabalhar. Poucos minutos antes da exposição oral começar, Elilson ainda caminhava; o balde em punhos ainda tinha espaço.
Nas duas narrativas presentes no ensaio — referentes às caminhadas de maio e julho de 2016 — as mudanças de contexto geram olhares e reações diferentes. Como o performer aponta, “no meio da rua as pessoas doam água sem questionamentos e com, no máximo, testas e vozes franzidas. Na universidade, ao contrário, o pedido requer explicação, porque o discurso é científico e a ação deve revelar metodologia, objetivos gerais e específicos e, por vezes, hipóteses norteadoras.”
Em seu relato, segue a importância de explicar para os transeuntes da UFRJ: o convite à colaborar era também a imperativa necessidade de se falar sobre o que acontecera. Na rua, Elilson elabora — e credita à própria cidade — a formulação de um ditado: “não se nega receber água de ninguém”. Na universidade, motivações expostas, o dar água torna-se implicar-se.
E por tantas que sejam as gotas d’água, estas, que nos implicam, nunca transbordam. O implicar-se pode trazer consigo águas poucas e águas turvas. Alguns, com suas garrafas suadas do gelado da água potável, fogem da abordagem, da explicação, dos acontecimentos. O não-compartilhamento ganha também sentido simbólico: evidentemente que não se aplica a todas e todos os convidados a colaborar mas, em muitos casos, não compartilhar é não se engajar.
Mesmo dentro do contexto de uma galeria de arte não está dado este envolver-se com a ação no tempo presente. Balde cheio, Elilson inicia o seu relato. A cada página lida, um mergulho que por vezes pesa como um afogamento. O performer lava sua boca, bebe da água coletiva e plural, e segue em frente. A performance se redimensiona no ato narrativo; o instante se representifica no relato de um agir passado que se torna uma nova ação — em quem a presencia e também no agente.
Quando Elilson inscreve no tempo da presença de seu corpo aquelas palavras, ele também chama as vozes que reagiram ao seu convite de participar — um jogo, leve, entre o narrador e a representação daquelas e daqueles que habitam sua memória viva. O presente, este sim, transborda, preenchido até a boca pela experiência — da performance e também do relato.
Elilson segue, para chegar em suas exposições orais, com seu balde em busca de cúmplices que enfrentem junto esta deriva. No esvaziamento da água coletada, lançada ao chão da galeria Vermelho, uma enxurrada que ganha campos e corpos. Em treze litros de um balde, cabem infinitas gotas. Que elas se unam, a partir de tantas mãos, nomes, vozes e engajamentos possíveis. E que se funde, ali, um oceano.