orgulho, teatro

corpos pulsantes não pedem licença para existir

crítica de “Quando Quebra Queima”, da coletivA ocupação

O efervescente movimento secundarista ocorrido em 2015 na cidade de São Paulo, que atingiu seu ápice na ocupação de 213 escolas (segundo a ALESP), teve consequências das mais diversas. Além do resultado efetivo da suspensão da reorganização escolar, outras marcas tangíveis e intangíveis reverberam nas vidas de muitas, muitos e muites dos participantes. A experiência radical de um ato que pode ser considerado revolucionário transforma não apenas uma sociedade, mas fundamentalmente aquelas e aqueles envolvidos nas ações.

Formada neste contexto, a coletivA ocupação estrutura-se no encontro de diversas, diversos e diverses estudantes com a artista Martha Kiss Perrone, que dirige o acontecimento cênico Quando Quebra Queima. Espetáculo de dança, performático, teatral: linguagens se mesclam e se reinventam na narrativa corporificada daqueles cuja existência encontrou nas ocupações um marco transformador.

Desde o início, são os corpos pulsantes que dizem mais do que as palavras. Corpos jovens, cheios de vida, que carregam em si as memórias vivificadas de um ato que permanece em devir. É redutor afirmar que o espetáculo conta apenas a história das ocupações. As histórias que vem a tona são as daquelas e daqueles jovens que, no momento em que decidiram saltar os muros, tomaram para si a construção de seus futuros: sujeitos políticos; não objetos.

“Quando Quebra Queima”, da coletivA ocupação / foto: Virginia Benevuto

Esses corpos plurais, negros, marginais, dissidentes, também multiplicam-se enquanto signos. Em partituras e coreografias explosivas, são corpos-muros e corpos-catraca. E ainda que tornado espécie de objeto para a ação cênica, nunca perdem de vista sua presença enquanto corpo-vivência. Corpo-coletiva.

No momento onde as palavras também dizem, é admirável a qualidade técnica do elenco — possivelmente conquistada e decantada ao longo das temporadas e viagens de Quando Quebra Queima. A coletivA ocupação salta fronteiras e ocupa espaços vários. “Nós vamos ocupar tudo”, bradam seus corpos em jogral. Através destes corpos, muito é dito.

A vigorosa fisicalidade da encenação desloca o público na direção da ágora. Impelidos a agir, espectadores são cúmplices convidados a construir junto — sejam palavras de ordem em uma faixa, seja a impactante barricada que reinventa o espaço cênico. Uma das pessoas do elenco veste uma camiseta dos Panteras Negras. É também disso que se trata: Move on over, or we’ll move on over you.

Performers das próprias vidas, atores se formando no fazer. Reatualiza-se constantemente uma percepção essencial ao mundo contemporâneo: todo ímpeto revolucionário se trata, de certo modo, de uma aposta. Um ato que só se legitima em ação. A coletivA ocupação traz a emergência de corpos cansados de não serem ouvidos; de corpos exaustos por sua invisibilização. Corpos que entendem que não precisam pedir licença para existir.

“Quando Quebra Queima”, da coletivA ocupação / foto: Mayra Azzi

Pode-se dizer que há uma agressividade que permeia diversos momentos de Quando Quebra Queima. No entanto, não se pode confundir urgência com violência. Trata-se de um levante, tal qual foi o movimento das ocupações em 2015. Pular os muros das escolas é uma espécie de salto no vazio.

A complexidade deste ato, simultaneamente impulsivo e justificado, é também levada à cena. Entre debates teóricos e a prática, existe um abismo — que é corajosamente encarado. Nas falas da assembleia que se estrutura, a dificuldade de um convívio comunitário, da comida à limpeza, passando pelas formas de organização política e a distribuição de tarefas.

Assim, aqueles corpos estão vibrando em todas as frequências. Suas alegrias e suas dificuldades tornam-se cicatrizes expostas, entre lágrimas, gritos e sorrisos. Espécie de síntese do espetáculo é a cena que traz o encontro da paixão com a revolta. É disso que se trata. Relações amorosas, conflituosas, solares, delicadas, densas; atritos e afetos. A intensidade da experiência vivida retorna, apropriada e refinada esteticamente, enquanto potência artística.

Para aqueles que insistem em torcer o nariz para as mobilizações da juventude, Quando Quebra Queima demonstra que, mesmo entre todas as dificuldades, não há ingenuidade na ação daquelas e daqueles jovens. Há desejo pulsante e a certeza de que o mundo é passível de transformação. Ganhar as ruas, ocupar tudo.

“Quando Quebra Queima”, da coletivA ocupação / foto: Marcelo Rocha