teatro

o outro, essa paisagem brutal

crítica de “Floresta”, com direção e dramaturgia de Alexandre Dal Farra.

[com colaboração de Andréa Martinelli na edição]

No prefácio de A queda do céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, Eduardo Viveiros de Castro afirma que se trata de um livro “sobre nós, dirigido a nós, os brasileiros que não se consideram índios” para, na sequência, localizar uma transformação do significado do termo yanomami napë.

(…) originalmente utilizado para definir a condição relacional e mutável de ‘inimigo’, passou a ter como referente prototípico os ‘Brancos’, isto é, os membros (de qualquer cor) daquelas sociedades nacionais que destruíram a autonomia política e a suficiência econômica do povo nativo de referência. O Outro sem mais, o inimigo por excelência e por essência, é o ‘Branco’. (p. 12–13)

Para responder cenicamente — o que não significa, evidentemente, trazer uma resposta concreta — à provocação “como lidar com o inimigo?”, o diretor e dramaturgo de Floresta, Alexandre Dal Farra, volta-se para a observação de reflexões vinculadas aos povos originários brasileiros. No programa da obra, trechos de A inconstância da alma selvagem, de Viveiros de Castro, trazem reflexões acerca desta temática.

A escolha de buscar em narrativas por muito tempo subalternizadas campos de possíveis para olhar a humanidade tem, nos últimos tempos, se apresentado com um maior espaço na cena teatral. Trata-se, talvez, da compreensão de uma necessidade de buscar epistemologias outras; descolonizar o pensamento — no discurso e na prática, no conteúdo e na forma.

É bem verdade que Floresta carrega consigo formas reconhecíveis do teatro contemporâneo, além de uma nítida assinatura de Dal Farra. Opõe-se à ação cênica protagonizada por atores e personagens não-indígenas a projeção de vídeos onde o diretor e dramaturgo conversa separadamente com os líderes indígenas Jurandir Kawak e Ailton Krenak, além de um onde ele pensa sobre o diálogo que teve com a dirigente da etnia kawésqar Carolina Huenucoy.

Kawak e Krenak respondem — de maneiras bem distintas — à pergunta “como lidar com o inimigo?”. Sobre a conversa com Huenucoy, o diretor reflete acerca de suas próprias ações na pesquisa de Floresta. Os três vídeos trazem provocações relevantes para o desenvolvimento e compreensão da obra; mais do que isso, é interessante pensar sobre as expectativas de Dal Farra em relação à quais seriam as respostas — e como elas reverberariam (e reverberaram) na encenação.

Pois parece haver um abismo entre a compreensão que nossa sociedade possui sobre o que é um “inimigo” e a compreensão dos povos originários. Em uma entrevista de 1989 publicada dentro da coleção Encontros da Azougue Editorial, Krenak responde a um questionamento acerca da aliança entre indígenas e seringueiros versando sobre a importância do inimigo entre os próprios indígenas:

Nós somos todos inimigos tradicionais. Agora, você talvez não entendeu ainda que na psicologia dos índios o inimigo tradicional você preserva, mais do que um amigo tradicional. Amigo tradicional você pode perder a qualquer momento, inimigo tradicional você mantém. Eu preservo meus inimigos tradicionais até a última hora. Sabe aquele cocar que começa com uma pena verdinha aqui, depois tem uma variação de tons, tem uma pluma azul aqui e outra verdinha no fim, o amigo tradicional é este aqui, o inimigo tradicional é este aqui, não tem dois caras mais perto um do outro do que o amigo tradicional e o inimigo tradicional. Os outros são povo. (p. 56)

Na conversa em vídeo projetada durante o espetáculo, trinta anos depois desta entrevista, Krenak nos presenteia com uma metáfora similar que auxilia não apenas a encerrar sentidos da encenação, mas efetiva-se enquanto provocação: antes de como lidar com o inimigo, é necessário pensar quem é o inimigo.

Gilda Nomacce, Clayton Mariano, Sofia Botelho e André Capuano em “Floresta” / foto: Otávio Dantas

Voltando ao termo yanomami napë, o inimigo é o Outro. Como lidar, então, com essa assustadora noção de alteridade? É ao redor desta questão que desenrola-se Floresta. Na situação proposta pela dramaturgia, uma família está escondida, como que fugindo de algo, aparentemente no meio da floresta amazônica — em dado momento da obra, revela-se que estão no estado do Pará.

Pai (Clayton Mariano), Mãe (Gilda Nomacce) e Filha (Sofia Botelho) parecem buscar uma vida normal — o que, em pouco tempo, se mostra impossível naquelas condições. Há meses estão isolados. O motivo para essa fuga não se apreende com precisão, mas por momentos sugere-se que a Mãe fez parte de algo execrável.

Os três lidam com a situação de forma diversa — o Pai tenta entusiasmar-se com a insuportável rotina; a Filha por vezes traz reminiscências de como era antes; a Mãe desde o início apresenta-se um tanto fora do tom, deslocada. Não que o desarranjo não se faça presente em todas as relações da família, com diálogos onde não há clareza nas respostas que nem sempre se desenvolvem coerentemente, mas é na figura dela que se centram pontuações excessivamente esquisitas da dramaturgia.

Nem mesmo a chegada inesperada de uma mulher (Nilcéia Vicente) mobiliza tais figuras: há, sim, um estranhamento inicial — que logo é suplantado por uma aceitação de certo modo passivo de suas falas e ações. E quando um homem também chega (André Capuano), cresce o desconcerto, a tensão e a violência naquele espaço.

Floresta reverbera temáticas e procedimentos de Refúgio (2018), também escrito e dirigido por Dal Farra. Na cenografia assinada por ele e Mariano, os tapumes verdes lembram de certo modo as paredes móveis do espetáculo anterior (ali, a cenografia era de Marisa Bentivegna). Nos registros de interpretação, escolhas similares no que diz respeito às interações — entre o blasé, a passividade e o absurdo — das personagens.

Em Refúgio havia um desejo incessante de sair daquele lugar e ir para um “lá” nunca localizado — desejo este concretizado; e depois desfeito com o retorno das personagens ao espaço cênico, que se tornava cada vez mais um bunker a partir do movimento do cenário. As referências a este lugar outro — ou a este não-lugar — eram sempre bucólicas e relacionadas à natureza.

Não que haja uma relação direta entre o que se desenvolve nos dois espetáculos, mas Floresta poderia ser este “lá”. Na obra anterior, não só pela súbita partida das personagens mas pelo próprio teor dos diálogos, havia uma tentativa de compreensão do outro que se desenvolvia na direção de uma completa incomunicabilidade; como se todos acabassem se prendendo em um labirinto ensimesmado.

Clayton Mariano em “Floresta” / foto: Otávio Dantas

O medo, em Refúgio, de certo modo, era o de ser abandonado à própria sorte — talvez centrado na personagem de Fabiana Gugli, única que parecia perceber o que se passava. Em Floresta, ainda que o pivô da situação pareça ser a Mãe, de Nomacce, é nela que parece estar simultaneamente a maior alienação e, de um modo torto, a melhor forma de lidar com tudo aquilo.

Na direção de Dal Farra, é interessante observar as reações das personagens que estão fora do centro da ação. Como se nelas estivesse boa parte do discurso da encenação — os conflitos se dão em sua maioria entre um membro da família e um dos que veio de fora; qual a diferença entre estes dois Outros?

Não são muitos os momentos em que um dos familiares intercede pelos seus; parecem todos receosos do que pode vir a acontecer. Cria-se, assim, o tensionamento de uma relação complexa que transita entre a brutalidade da violência testemunhada e a passividade do medo. Como se o que estivesse em questão fosse precisamente este viver com medo de um inimigo — e a compreensão de que este ‘inimigo’ é tudo que não sou eu.

Assim, Floresta desenha tentativas de aproximar-se deste Outro; desde perplexos diálogos até ataques físicos e atos de sacrifício. Ainda que não busque justificar precisamente o que havia acontecido com a família ou as motivações daqueles que chegam subitamente, certas referências localizam esse choque radical da alteridade.

Nas metáforas e pontes construídas, relações mais e menos diretas são estabelecidas. Se parece coerente trazer à tona uma série de massacres e chacinas no que se refere a localizar não apenas geograficamente, mas historicamente aqueles acontecimentos, outras escolhas são mais ruidosas.

Há um certo estranhamento na ocorrência de uma citação direta a um aforismo de Minima Moralia, de Theodor Adorno, pela lógica interna da situação proposta. No entanto, o abordado pelo autor em Paysage dialoga diretamente com a questão da percepção do outro: falando sobre a paisagem americana, Adorno aponta que o que “falta” nela é precisamente traços da passagem de uma mão humana; há a estrada e a natureza, selvagem, sem nenhuma relação ou suavização entre uma e outra.

Como se “ninguém tivesse passado a mão pelos cabelos da paisagem”, os olhares que passam rapidamente de dentro dos automóveis não retém nada; tampouco deixam seus vestígios. Dentro da proposta do espetáculo de Dal Farra, tal citação pode ser lida como uma analogia com nossos modos de perceber o Outro; a raridade de efetivamente debruçar-se em um olhar e permitir-se o impacto desta relação.

O Outro, então, mesmo que para ser visto como o inimigo, mesmo que para ser visto com medo, deve ser visto em sua complexidade. Ailton Krenak diz, em Ideias para adiar o fim do mundo, que “é maravilhoso saber que cada um de nós que está aqui é diferente do outro, como constelações” (p. 33). Constelações, paisagens naturais em estado bruto, inimigos. Vivenciar o não-saber da alteridade é tão maravilhoso quanto assustador.

André Capuano, Gilda Nomacce e Nilcéia Vicente em “Floresta” / foto: Otávio Dantas