o que é uma cidade?
crítica de Estilhaços de janela fervem no céu da minha boca, do coletivo teatral A Digna, com direção de Eliana Monteiro.
O que é uma cidade? Como pulsa esse emaranhado e contraditório espaço de convívio e confrontos? É o direito a ela que habita o cerne da Trilogia do Despejo, do coletivo A Digna, agora encerrado com Estilhaços de janela fervem no céu da minha boca. O nome da obra evoca mais uma sensação do que uma imagem. Na fricção entre texto, de Victor Nóvoa, e encenação, de Eliana Monteiro, São Paulo é inconfundível protagonista.
Nas canções que embalam parte do trajeto cênico-urbano, muitas vozes e discursos em torno do que pode ser a metrópole. Nos trabalhos d’A Digna, a maior cidade do Brasil passa longe de ser uma abstração: é um campo em franca disputa. Em Condomínio Nova Era (2014), ela, em suas desigualdades, era a razão de existir daquela ocupação; o pano de fundo da narrativa. Já em Entre Vãos (2016), os trânsitos possíveis das personagens na cidade ganhavam corpo no percurso até a grandiosidade da estação Sé do metrô.
Enquanto Condomínio Nova Era trazia uma visão excessivamente dicotômica (segundo crítica de Daniel Toledo) dos conflitos em torno da questão da moradia e Entre Vãos volta o olhar para o despejo dos afetos (nas palavras de Vana Medeiros), como se uma ordem judicial nos despejasse de quem somos (como escrevo na crítica deste site), Estilhaços cria dispositivos que funcionam como lentes de aumento para o que já está ao nosso redor; para quais são as tensões da cidade.
Em Estilhaços da janela fervem no céu da minha boca, o que ganha a cena não é mais a realidade do despejo, ação que nomeia a trilogia, mas precisamente o que costuma vir depois: a gentrificação, seus agentes e beneficiários. A dramaturgia de Nóvoa, escrita em 2019, foi revisitada e reorganizada para a encenação. Seria impossível não sê-lo, considerando como foram os últimos anos. Não apenas pela pandemia e suas necessidades intrínsecas de adaptação, como as que dizem respeito a protocolos sanitários, mas fundamentalmente pelos debates que ganharam imensa visibilidade nestes tempos.
De um lado, uma cidade-canteiro-de-obras. Do rebranding da quitinete, que agora é studio e o metro quadrado é muito mais caro. De imóveis que já nascem para servir como investimento e não moradia. De bairros planejados – por quem, para quem? Do outro lado, a cidade-precariedade. Dos trabalhos sem vínculos empregatícios. Da uberização. Do despejo. Do linchamento, do racismo. Das mortes em trânsito que viram notícia pelos congestionamentos que geram.
A síntese do confronto – absolutamente desigual – destas duas cidades está no release divulgado pela assessoria do coletivo A Digna: o espectador é convidado para o lançamento de um novo empreendimento imobiliário no bairro da Barra Funda. No dia agendado, um carro de aplicativo vai buscá-lo em sua casa para levá-lo até o local do evento.
Na ficha técnica de Estilhaços, André Mendonça, Fábio Hilst, Felipe Silva de Lima, Luala, Malvina Cubas, Marcelo Dalourzi, Márcio Delucca, Mateus Rodrigues, Matheus Da Cruz, Reginaldo Pereira, Renan Vinicius e Sheila Salum formam o Coro de Motoristas. Interessante notar que a logística da cena estilhaça esse coro, visto que na maior parte da encenação cada um deles está com uma (ou duas) pessoas do público.
A fragmentação faz com que haja espaços do discurso do espetáculo muito particulares, a serem preenchidos pela interação entre motorista e passageiro. Ao mesmo tempo, a unidade é mantida não apenas pelas ações conjuntas – seja no trajeto, onde os carros seguem sempre próximos, seja na cena final – mas principalmente pela dramaturgia compartilhada: mais do que apenas dirigir um veículo, motoristas deste coro são também condutores do olhar e do imaginário do espectador.
Rasgando o asfalto e interferindo na relação que o público constrói com a cidade está o segundo coro de Estilhaços de janela fervem no céu da minha boca: Aline Os, Bruna Sampaio, Joaquim Renato, Lola Gi e Marite Solorzano, das Señoritas Courier, compõem com a cidade e a comentam em tempo real em seus movimentos e pausas.
Estruturalmente, é importante ressaltar a precisão do trabalho de Catarina Milani, diretora de produção, e Ocimar Costa (Mandi), diretor de logística da obra, fundamentais na eficiente dinâmica invisível que permite a interpenetração entre cidade e cena ensejada por Monteiro.
Os recortes de São Paulo no trajeto proposto por A Digna e Monteiro são simultaneamente narradores e narrativas. Estilhaços está o tempo todo existindo a partir dela, sobre ela e em oposição a ela – a cidade passa a ser lida epicamente, e o enquadramento da teatralidade passa a suspender os (menos) óbvios limites entre realidade e ficção: o bairro da Barra Funda parece um cenário construído para o espetáculo.
No caminho, em uma mesma rotatória, Reginaldo Pereira me conta que naquele gramado viviam cinco famílias, expulsas quando do lançamento de empreendimentos imobiliários na região; que na esquina será aberto um imenso teatro (diante dele, vejo mudas igualmente imensas de palmeiras que, presas com fios na terra, parecem cenográficas); que aquelas flores brancas e velas acesas diante de uma ghost bike são homenagens às vítimas da violência do Estado – lembro-me de reconhecer Vladimir Herzog e também a cicloativista Marina Harkot nas fotos.
Em outro momento, um segurança de moto ronda o coro de ciclistas. Olho para uma das infinitas varandas gourmets da paisagem e um casal joga pingue-pongue. Alguém grita. No campo de futebol, um garoto lança frisbee para o seu cachorro buscar. Um carro diminui a velocidade para acompanhar uma cena até que o som do aplicativo o chama de volta. Enquanto estacionados, um curto-circuito no poste parece uma queima de fogos de artifício assustadoramente próxima. Imerso nas camadas do discurso cênico, pouco importa se são ações deliberadas do coletivo A Digna, acaso ou coincidência: aquelas imagens tornam-se parte, são também estilhaços a ferver.
Na relação convivial que se estabelece com o motorista de aplicativo, há a rápida percepção de que estamos dentro do jogo ficcional; que ele segue um roteiro de falas e ações – com o rádio do carro, com o próprio celular e aplicativos de mensagens. Ao mesmo tempo, não está tudo no campo dramatúrgico: na conversa, falamos sobre quem somos, sobre a cidade em que vivemos, das mazelas de bairros periféricos e dos privilégios de bairros centrais. Cabe ressaltar a naturalidade de Reginaldo neste trânsito entre o papo sincero e as deixas da encenação (na viagem de volta, ficção encerrada, confidenciou-me que tem recebido alguns elogios, mesmo tendo apenas uma longínqua experiência com o teatro na juventude. Pois fica aqui registrado mais um!).
Desde muito antes da encenação começar, um perfil no WhatsApp envia materiais sobre o evento de lançamento do empreendimento. Nos vídeos, o público conhece o empreendedor Motta Filho (Nóvoa, divertidíssimo) e suas Ilhas dos Sonhos. Também é apresentado às personagens da cena que irá assistir – o apartamento que irá visitar mais adiante, em cenas simultâneas. Serão destas figuras as vozes que, durante o trajeto, estarão em propagandas e entrevistas na rádio, compondo junto à trilha de Carlos Zimbher paisagens dramatúrgico-sonoras durante grande parte do trajeto. Nas falas, os sonhos que podem soar idílicos e inocentes à primeira vista revelam aos poucos sua outra face, violenta.
Há em tudo uma fricção com o que nos é desconfortavelmente próximo. A brutalidade do cotidiano nos cerca em suas diversas camadas. Quando Estilhaços de janela fervem no céu da minha boca escolhe circundar o Parque Jardim das Perdizes, perceber o abismo que existe entre esses oásis e a miséria chega a doer. A dramaturgia ainda sustenta a presença do público nos carros como potenciais compradores, investidores interessados no lançamento; a realidade já atropelou esse enquadramento.
A Digna, desse modo, trabalha com um grau mínimo de ficção nesse percurso, estabelecendo uma espécie de performatividade da própria cidade, seus acontecimentos, suas personagens, suas ilusões. Sabe-se que há uma camada narrativa sob o controle do grupo; que certas informações não são reais – mas poderiam ser. O motorista de aplicativo que mostra áudios e vídeos do WhatsApp, a presença de trabalhadores precarizados no meio-fio, sobrevivendo entre uma notificação e outra do aplicativo de entregas, um jovem negro acusado de furto e agredido por isso. Estamos no Brasil, é 2021: não há novidade.
Estilhaços é a busca de um coletivo teatral por um gesto que possa ser resposta, reação, movimento, em relação a isso. Essa busca parte de um diálogo franco com a cidade, fundamentalmente em suas mazelas e misérias, a grande metrópole deste Brasil de 2021. Enquanto no asfalto a cidade queima, mais e mais querem estar perto do céu.
Na zona oeste de São Paulo, uma empresa transformou um loteamento em bairro planejado. Para quem? Ilhas dos sonhos. De quem? O gesto d’A Digna não deixa dúvidas em torno de qual é a sua posição nesta cidade em disputa. A Trilogia do Despejo começa com prédios derrubados, caminha pela busca por onde existir e então se depara com prédios erguidos.
Há ainda de se pensar sobre alguns dos moradores. O segundo ato de Estilhaços é chamado, na dramaturgia de Nóvoa, de Narrativas íntimas. Na encenação que ganhou a cidade, as cenas simultâneas são exibidas em vídeos gravados, apresentados nos televisores do estande do evento de lançamento do Ilhas dos Sonhos Barra Funda, nosso destino final.
Se enquanto texto elas operam de forma central na narrativa, aqui parecem menores – não pelas cenas em si, mas pelo todo que as circunda. Cada narrativa íntima traz consigo uma série de modificações para a experiência do espectador, seja nos vídeos enviados previamente, seja na programação da rádio ficcional.
A mediação, presente na escolha pelo formato audiovisual, faz com que aquelas realidades soem ainda mais distantes do real; do concreto e do asfalto. De algum modo, há um certo esvaziamento quando se contrapõe – ou justapõe – a cidade àqueles diálogos. Ao mesmo tempo, a intimidade daquelas figuras também revela muito, mesmo que de forma não tão direta, sobre os processos históricos que estão por trás daquilo que observamos nas ruas.
O texto de Nóvoa sobe um degrau na dimensão ficcional; ainda que as atuações (de Ana Vitória Bella, Eliana Bolanho, Helena Cardoso e Paulo Arcuri) se dêem em chave realista, as situações desenvolvem-se sempre envoltas de um dado surreal, over – o que não extirpa de todo a verossimilhança daquelas figuras, mesmo em suas maiores abjeções. Brasil, 2021. Estabelecem-se lógicas próprias e particulares no desenrolar das cenas, fazendo com que, conforme aponta Luís Alberto de Abreu no prefácio da edição impressa da dramaturgia, as personagens não tenham curvas lineares de ação, visto que manifestam características e comportamentos aos saltos, como que presos às pulsões do momento.
Na fricção entre estes, de dentro, e os de fora, aqui representados pelos coros de motoristas e ciclistas-entregadores de aplicativo, fica nítida a estreiteza dos sonhos e o quão pequenas e isoladas são as ilhas que se constroem. Estilhaços sabe bem a hora de abandonar as personagens e voltar o olhar, novamente, para o que pulsa nas ruas da cidade. O gesto d’A Digna personifica-se na figura do Garoto, belamente interpretado por Mateus Rodrigues. O gesto do teatro, deste teatro, é uma oferenda brutalmente simbólica para uma cidade brutalmente concreta.
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ficha técnica Estilhaços de janela fervem no céu da minha boca Idealização, Concepção e Realização: A Digna e Eliana Monteiro Direção: Eliana Monteiro Diretor assistente: Eder dos Anjos Dramaturgia: Victor Nóvoa Elenco: Ana Vitória Bella, Eliana Bolanho, Helena Cardoso, Ícaro Rodrigues, Paulo Arcuri e Victor Nóvoa Participações especiais (vídeos e áudios): Catarina Milani, Carlos Zimbher, Caio Franzolin, Karen Menatti, Lucas França, e Ocimar Costa (Mandi) Corifeu: Ícaro Rodrigues Coro de motoristas: André Mendonça, Douglas Cardoso Fontes , Fábio Hilst, Francisco Chaves, Luala, Marcelo Dalourzi, Márcio Delucca, Mateus Rodrigues, Matheus Da Cruz, Reginaldo Pereira, Renan Vinicius e Sheila Salum. Bikers: Señoritas Courier - Aline Os, Bruna Sampaio, Joaquim Renato, Lola Gi e Marite Solorzano. Trilha sonora original e sonorização: Carlos Zimbher Gravação e Mixagem: Daniel Doctors Cenários e Figurinos: Eliseu Weide Iluminação: Aline Santini Produção e Direção Audiovisual: Pasárgada Comunicação Captação dos Áudios da Filmagem: Leandro Wanderley Simões Direção de Produção: Catarina Milani Assistência de Produção: Gabriel Küster, Leonardo Sousa, Lucas França, e Ton Ribeiro Produção Financeira: Fernando Gimenes Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli Diretor de Logística: Ocimar Costa (Mandi) Design Gráfico: Vertente Design Contrarregras: DG e Marcelo Rodrigues Elétrica: Pajeú serviço Espetáculo Estilhaços de Janela Fervem no Céu da Minha Boca Temporada: de 9 de outubro a 28 de novembro – Sábados, domingos e feriados às 18h30. Ingressos: R$20 e R$10 (meia-entrada) Venda de ingressos - https://adigna.com Duração: 110 minutos. Classificação etária: 12 anos. Capacidade: 24 espectadores.