performance

atravessar o corpo-tempo, profanar o corpo-templo

relato crítico a partir de Ritu.1/Penetra!, da Coletiva Profanas.

1. Domingo, 24 de outubro de 2021. Chego ao Centro Cultural São Paulo. O espaço está cheio de jovens que dançam, conversam, bebem, vivem. Próximo de onde a performance de Manfrin começará, um grupo prega a palavra de Cristo por meio de uma cena teatral. Falam de amor. Quando a performer se aproxima, penso sobre amor. Sobre inclusão, aceitação, diversidade. A cena já terminou, os jovens canta louvores. Olho para Manfrin. O vestido branco tem um quê de noiva.

2. O CCSP acolhe públicos diversos. Uma corpa trans, ainda assim, parece seguir atraindo olhares curiosos. De todo modo, Ritu.1/Penetra é uma performance. A Coletiva Profanas está construindo espaço-tempos para a contemplação da figura de Manfrin. As produtoras ajustam sua roupa e dão-lhe um fone de ouvido. “Você gostaria de ouvir o que a performer está ouvindo?”. Digo que sim e também recebo um fone. Por seis horas, escutarei uma versão em loop de Creep, do Radiohead.

3. Seis horas. Ritu.1/Penetra é uma performance duracional e em muitos momentos relacional. Quando me sento em uma mureta para acompanhar a primeira Estação – como a Coletiva divide as etapas da performance – estou feliz. A pandemia alargou o tempo enquanto estreitou suas possibilidades e agora poderei simplesmente estar ali em estado de fruição por um tempo que se abre sem pressa. Sempre lembro de Ailton Krenak: a vida é fruição. Corpo-tempo.

4. Estações. Antes de saber que este era o termo utilizado pelas pessoas criadoras da performance, anotei que Ritu.1/Penetra organiza-se em Altares. Pois as profanações propostas por (e em) Manfrin parecem um convite à travessia do sagrado. Corpo-templo.

5. Primeiro Altar. A matéria e a Matrix. Manfrin deita. Sobre ela, uma pedra. O peso forma e transforma a corpa estendida no chão. Ritu.1/Penetra é também materialidade em processo: aqui, a performer é o primeiro elemento do altar a se constituir. Então, Serafim do Mundo e Marina Gatti, designers de luz da performance, estendem uma teia de fios alguns metros sobre ela. Os fios servem de apoio para mangueiras de iluminação neon. Longas tranças de Manfrin são conectadas às cores. A instalação torna a performer parte de um mecanismo vivo, algo de uma entidade biotecnológica; penso nos cabos que permitem às pessoas libertas se conectarem ao mundo da Matrix no filme das irmãs Wachowski. Penso nessa existência ciborgue, nesse espaço híbrido, na organicidade da pedra, da corpa, da luz.

6. Segundo Altar e a travessia da transição. Manfrin cruza o pátio interno do CCSP. Já há um ninho desenhado para ela. Sua ação é simultânea à de Serafim e Gatti, que seguem desenhando luzes-espaços onde se pode habitar ou atravessar. A performer se despe de certos códigos – não é necessária a nudez: retira-se um salto, uma luva, já se é outra corpa. Da pequena bolsa, pega o hormônio. Além de realizar a aplicação, ela também utiliza a seringa para uma autotransfusão de sangue. Da veia ao músculo, para que pulse de outro modo. 

7. Manfrin retira da bolsa também pequenas agulhas. Muitas. O diálogo entre performance art e modificações corporais não é novo; o que interessa aqui são as teias de significados e sensações evocadas por Ritu.1/Penetra. A releitura travesti de Antígona, como consta na divulgação, versa sobre uma autonomia quase irrestrita sobre o próprio corpo, sobre a própria corpa. O corpo é um templo passível de profanação, penetração, transformação.

8. Já com o rosto atravessado por dezenas de agulhas, Manfrin olha para mim com mais uma na mão. É um convite e não hesito muito para aceitar. Penetro sua pele e a minha subjetividade nessa ação perfurante. Ela fura agora o peito e me convida a fazer o mesmo. Hesito e de certo modo fracasso nessa intervenção; a agulha se suspende num fiapo de pele. Um fiapo.

9. Outras pessoas são convidadas. Algumas se demoram. Duas garotas se aproximam. Aceitam o convite. Não conseguem.

10. É sempre curioso pensar a forma pela qual aceitamos tomar parte de proposições artísticas mesmo quando de algum modo violentas ou dolorosas. Autonomia, consentimento, poética, recepção, participação.

11. Manfrin costura linhas em suas mãos. Uma Moira tecendo o próprio destino e também cortando seus fios.

12. A imagem que finaliza a composição deste Altar é Manfrin de pé, diante do próprio reflexo na parede envidraçada do CCSP, com os braços estendidos. Lembro dos jovens pregando o evangelho e por um segundo penso na crucificação. O olhar de Manfrin não é o do Cristo na cruz. É uma convocação ao olhar: eis-me aqui.

13. Uma garota pergunta à produtora se pode abraçá-la, e então faz isso. É bonito. Reflito sobre o ímpeto da participação. Quase na chave oposta da perfuração. Um abraço. Manfrin e ela se olham, trocam carícias. A performer então ganha o espaço; gira.

14. Ritu.1/Penetra constrói Altares e propõe cortejos. Atrás de Manfrin, uma pequena coletividade temporária se percebe pelo movimento quase de coro e pelos fones de ouvido. Ela caminha pelo CCSP. Eis-me aqui, a imagem diz, com os braços abertos e as palmas da mão à frente. Sua presença é provocativa, seus olhares são também penetrações; profanações.

15. Na rampa de acesso ao Centro Cultural, uma massa de jovens veste preto, acessórios da cultura pop oriental, maquiagens góticas. Flertam, bebem, fumam; se divertem ali, em um espaço que acolhe suas performatividades socioculturais. Mas mesmo a diversidade também é plural e não é por estar em desvio da norma que toda dissidência é aceita. Tiro o fone em alguns momentos para sair do transe performático e tocar o pé novamente na realidade. Há uma atmosfera blasé na tentativa de ignorar aquela corpa perfurada; há comentários, há um estranhamento. Eis-me aqui.

16. Manfrin gira. Cai. Passa mal. O corpo tombado também significa. 

17. O fogo trazido por Serafim a conduz de volta para dentro. Uma fogueira está acesa. INRI. Igni natura renovatur integra. A natureza é completamente renovada pelo fogo. O terceiro Altar é a transformação da matéria pelo que queima. Já está anoitecendo e estamos todes ao redor da fogueira. Manfrin retira uma a uma suas agulhas e as lança nas chamas; nos convida a tomar parte. Igni natura renovatur integra. E ela já é outra.

18. As duas garotas voltam. Manfrin olha para elas. Agora o convite é aceito. É bonito.

19. Enquanto o material perfurante queima, Ritu.1/Penetra adentra de vez o espaço do transe. Manfrin pulsa com o fogo. Serafim acende duas claves. Dança com as chamas. Cospe fogo no céu.

20. Mais um cortejo. Onde haviam agulhas, escorre sangue. Eis-me aqui. Serafim cospe fogo na calçada. Manfrin corre, corre, corre, corre. Sobe as escadas para o jardim que já está fechado. Não podemos segui-la. Alguém aponta para a rua. Voltamos para a calçada. Manfrin e Serafim estão sentades sobre o pórtico de entrada. Ali, existindo, se beijam.

21. Chegamos ao último Altar. Tiro o fone de ouvido; a mesma música segue tocando. Agora é cantada ao vivo por Amarilis. Sobre o linóleo branco, pedras e pedras e pedras. Manfrin é preparada e engessada. Tornada monumento dela mesma. Dias depois, vou reassistir Corpo Sem Juízo, o EP visual de Jup do Bairro – há ali também essa sequência de vida, morte, renascimento. Lembro, enquanto escrevo, de Renata Carvalho sendo Jesus Cristo, sacralizando sua existência.

22. Ritu.1/Penetra chega ao final após uma dança cega de Manfrin; um combate. Ela enfrenta o espaço e trabalha com as pedras. Até que cai. Um corpo tombado significa. Somos convidades a tomar parte de sua monumentalização. Atravessada pela travessia, a imagem final evoca a inicial. Corpo-tempo, corpo-templo: matéria passível de infinitas transformações.

[colabore com a produção crítica de amilton de azevedo: conheça a campanha de financiamento contínuo para manter a ruína acesa – ou colabore diretamente através da chave pix@ruinaacesa.com.br]

ficha técnica

Ritu.1/Penetra!
da Coletiva Profanas e CASAOITO

Manfrin: Criação, Direção e Performance
 
Serafim do Mundo: Res Design de Luz
 
Marina Gatti: Design de Luz
 
Amarilis Vitale: Trilha Sonora  e Cantora
 
Pedro Cunha Vituri: Guitarrista da Trilha Sonora 
 
Julio Aracack: Fotografia
 
Camila Brito: Cabelo
 
Ginger Moon: Maquiagem
 
Carola Gonzales: Assessoria de Imprensa
 
Natalia Gomides: Assessoria de Mídia
 
Karen Sobue: Produção Executiva
 
Flora Mesquita: Assistente de Produção  
 
Cauane Nogueira: Assistente de Produção