destaque, teatro

evocar em corpo-cruzo uma cartografia tectônica

crítica de Erupção – o Levante ainda não terminou, da coletivA ocupação. este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

“(…) o caboclo das Sete Encruzilhadas permanece sendo um poderoso intelectual brasileiro. Nunca achei mera coincidência que seu brado insubmisso tenha sido lançado no aniversário da Proclamação da República. Seu protesto gritado na ventania, suas flechas atiradas na direção da mata virgem clamam por uma aldeia que reconheça a alteridade, as gramáticas não normativas, as sofisticadas dimensões ontológicas dos corpos disponíveis para o transe, a generosidade dos encontros, as tecnologias terapêuticas e populares do apaziguamento das almas pela maceração das folhas e pela fumaça dos cachimbos do Congo. É ainda o brado mais que centenário do caboclo das Sete Encruzilhadas que joga na cara do Brasil, como amarração, nosso desafio mais potente: chamem os tupinambás, os aimorés, os pretos, os exus, as pombagiras, as ciganas, os bugres, os boiadeiros, as juremeiras, os mestres, as encantadas, as sereias, os meninos levados, os pajés, as rezadeiras, os canoeiros, as pedrinhas miudinhas de Aruanda. Chamem todas as gentes massacradas pelo projeto colonial (e cada vez mais atual) de aniquilação. A pemba risca os ritos desafiadores de afirmação da vida.” (Luiz Antonio Simas em O corpo encantado das ruas)

Temperos, terra e outras matérias em pó marcam chão e ar como pembas riscam terreiros. Corpos vibram. Convocam de seus centros a energia vital que faz do mundo tremor e movimento. A coletivA ocupação faz de cada molécula de cada corpo e de cada centímetro do espaço cênico do Sesc Avenida Paulista um vulcão ativo em Erupção – o Levante ainda não terminou (2022). Alinhados em coro, transformam-se em uma maré de lava que avança de costas, à contrapêlo da História. De onde se espera destruição, emerge Tituba, primeira voz ancestral dentre as tantas evocadas pela encenação.

Se a palavra de ordem em Quando Quebra Queima (2018), primeiro trabalho do grupo, era ocupação, Erupção é uma visão que parte da história – esse profeta com o olhar voltado para trás, que, pelo que foi, e contra o que foi, anuncia o que será, como escreve Eduardo Galeano – para lançar no devir processos de retomada.

Assim como no espetáculo-acontecimento anterior, desde o início, são os corpos pulsantes que dizem mais do que as palavras. Da mesma forma, a coletivA ocupação traz a emergência de corpos cansados de não serem ouvidos; de corpos exaustos por sua invisibilização. Corpos que entendem que não precisam pedir licença para existir. Mas em Erupção – o Levante ainda não terminou, seus corpos-vivências expandem-se enquanto signos para além de si; tornam-se corpos-cavalos de vozes históricas, míticas, místicas e de forças da natureza.



Sob a direção de Martha Kiss Perrone, Erupção é criação eminentemente coletivA, como pode se verificar na própria tessitura da cena e confirmar pela organização da ficha técnica: a dramaturgia é creditada, nesta ordem, à coletivA ocupação, Ícaro Pio, Lilith Cristina (ambos também performers-criadores) e Perrone. Há também a banda coletivA e as frentes – Corpo coletivA, Música coletivA, Dramaturgia coletivA, Visualidades coletivA – compostas tanto por performers-criadores quanto por colaboradores.

Nesta lida com uma miríade de cosmogonias e narrativas, Erupção estrutura-se enquanto uma ambiciosa empreitada da coletivA. Ao encenar tempos e ventos, performers-criadores são corpos-encantades, corpos-magmas, corpos-mares, corpas-ancestrais. Assim, ainda que partindo de acontecimentos históricos, este Levante que ainda não terminou parece se desdobrar em eras geológicas, movimentando profundezas de um mundo em contínua (trans)formação.

Se por vezes a apreensão do todo do discurso corre o risco de escapar pelos dedos, a todo momento é possível sentir as mudanças climáticas do espaço cênico. Corpos, corpas, música, palavra e iluminação são terremotos e tempestades nesta Erupção constante. Festa e guerra, alegria e angústia, prazer e dor, polos aparentemente binários, são como placas tectônicas em seus movimentos convergentes, divergentes e transformantes.

Nesta cartografia de levantes, o tremor necessário para fazer emergir vulcões faz da lava representação precisa do suor dos condenados da Terra; dos excluídos das terras. O movimento espiralar da coletivA se desenvolve na efetivação de uma gira cênica onde as revoltas do passado são pulsações ancestrais na direção de futuros possíveis. Os ventos ensinam, como diz um velho provérbio dos congos, que os pássaros têm asas porque elas lhes foram passadas por outros pássaros (Simas e Luiz Rufino em Encantamento: sobre política de vida)

Depois de ocupar tudo, a coletivA parece ter feito das ruas de asfalto e clareiras nas matas seus territórios de escavação e invenção. E conforme aponta Simas (em O corpo encantado das ruas), precisamos de corpos fechados ao projeto domesticador do domínio colonial, que não sejam nem adequados nem contidos para o consumo e para a morte em vida. Precisamos de outras vozes, políticas porque poéticas, musicadas; da sabedoria dos mestres das academias, mas também das ruas e de suas artimanhas de produtores de encantarias no precário.

O projeto agregador que se materializa em Erupção busca evocar essas outras vozes, fazer confluir as sabedorias e as artimanhas na escolha por trabalhar na direção do reencantamento do mundo. E o encantamento enquanto manifestação da vivacidade expressa no cruzo entre naturezas e linguagens, está implicado na dimensão da comunidade e do rito (Simas e Rufino em Encantamento: sobre política de vida). Por isso, talvez, a coletivA opere precisamente neste cruzo.

A pedagogia das encruzilhadas é versada como contragolpe, um projeto político/epistemológico/educativo que tem como finalidade principal desobsediar os carregos do racismo/colonialismo através da transgressão do cânone ocidental. Esse projeto compreende uma série de ações táticas que chamamos de cruzos. São essas táticas, fundamentadas nas culturas de síncope, que operam esculhambando as normatizações. Os cruzos atravessam e demarcam zonas de fronteira. Essas zonas cruzadas, fronteiriças, são os lugares de vazio que serão preenchidos pelos corpos, sons e palavras. Desses preenchimentos emergiram outras possibilidades de invenção da vida firmadas nos tons das diversidades de saberes, das transformações radicais e da justiça cognitiva. (Simas e Rufino em Fogo no Mato: a ciência encantada das macumbas)

Quando a coletivA ocupação faz des performers corpos-cruzos na evocação de forças que desenham em Erupção uma cartografia tectônica, a encenação apresenta uma espécie de potência místico-dialética, onde a presença de entidades e encantades não se descola da materialidade histórica, compreendendo o rito como dimensão comunitária e organizador de sociedades plurais.

Para muito além dos nomes próprios escutados na cena, de líderes de revoltas à avôs e avós des performers-criadores, a Erupção é fundamentalmente coletiva e coletivizante. Nas composições cênicas, o coro é uma constante. Em coreografias, o movimento uníssono é contaminado por vibrações em diferentes frequências que emanam de cada corpo que pulsa. Nos cruzos habitados pela coletivA, emergem as tantas possibilidades de invenção de vida.

Em todas as camadas de Erupção assenta-se um tempo espiralar, um tempo que não elide as cronologias, mas que a subverte (Leda Maria Martins em Performances do tempo espiralar). A batida sincopada dos tambores coexiste com os beats eletrônicos na trilha assinada pela Frente de música coletivA e DJ Shaolin. Nos figurinos de Juan Duarte, tradição e cotidiano friccionam-se em farrapos que sustentam um fluxo que atravessa tempos e espaços. A iluminação de Benedito Beatriz faz do teto um céu onde atmosferas dançam ao mesmo tempo em que lasers desenham e recortam a cena, algo entre a cultura de festas underground da cidade de São Paulo e uma perspectiva (afro)futurista.

Correndo em círculos, es performers-criadores fazem ventar dentro do espaço. No rodar desta gira, movimentam as cinzas de uma distopia passada e presente; o processo civilizatório e seus projetos coloniais, suas opressões, supressões, violências. Raça, gênero, classe, cultura, sociedade. A coletivA ocupação transborda em lava para guerrear, festejar, destruir, reconstruir e reencantar mundos. Erupção espalha as cinzas como quem semeia o solo para plantar futuros.

logo do projeto arquipélago

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ficha técnica
Erupção - o Levante ainda não terminou
coletivA ocupação
Performance e criação: Abraão Kimberley, Akinn, Alicia Esteves, Alvim Silva, Ariane Aparecida, Benedito Beatriz, Dj Shaolin, Ícaro Pio, Lara Júlia Chaves, Letícia Karen, Lilith Cristina, Marcela Jesus, Marcéu Maria Fernandes, Mel Oliveira, Matheus Maciel, PH Veríssimo
Direção: Martha Kiss Perrone
Dramaturgia: Ícaro Pio | Lilith Cristina | Martha Kiss Perrone 
Iluminação: Benedito Beatriz
Direção de movimento: Ricardo Januário
Colaboração corporal: Castilho
Som: DJ Shaolin | Frente Música coletivA
Colaboração musical: Anelena Toku | Rafael Coutinho
Figurino: Juan Duarte
Assistência de Figurino: Marcela Akie
Coordenação de palco: Jaya Batista
Direção de arte: Frente Visualidades coletivA
Preparação vocal: Abraão Kimberley
Produção: Corpo Rastreado - Gabs Ambròzia | Paula Serra
Difusão: Corpo a Fora
Residência: Casa do Povo