cinco agitadores e uma polifonia dissonante
crítica de E se a porta cair seguiremos sentados apenas mais visíveis, da Cia de Teatro Acidental. este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.
Quando Bertolt Brecht escreve A Decisão, em 1929, inicia sua dramaturgia com a fala do Coro de controle, voz ligada ao Partido Comunista da União Soviética, afirmando aos Quatro agitadores que estiveram em missão na China para a difusão dos ideais revolucionários que também neste país a revolução está em marcha, e as fileiras de combatentes estão organizadas. Na obra que encerra a Trilogia dos afetos políticos da Cia de Teatro Acidental (formada em Campinas, SP), a dramaturgia de Artur Kon inverte esta chave; em E se a porta cair seguiremos sentados apenas mais visíveis, o trabalho não foi bem-sucedido: também neste país (como em todos os outros) a revolução é uma ideia distante. As fileiras de combatentes estão totalmente desorganizadas, aliás quase não há combatentes.
O texto de Brecht, com sua estrutura de duplo julgamento (um coro do Partido julga quatro agitadores que, no trabalho clandestino de incitar a revolução, se veem forçados a julgar e executar um camarada, que deve aprender a morrer), foi ele mesmo submetido ao julgamento implacável da direita tanto quanto da esquerda anti-stalinista, considerando ainda que o próprio Partido condenara a peça, negando ver nela narradas práticas comparáveis às suas, conforme as palavras de Kon no prefácio da publicação da Trilogia dos afetos políticos (Javali, 2022).
A percepção desta peça didática (Lehrstück) como espécie de propaganda dos ideais comunistas inclusive foi pauta dos questionamentos relacionados à atuação de Brecht diante do Comitê de Atividades Antiamericanas (HUAC), como mostra o depoimento registrado em 30 de outubro de 1947, onde o artista alemão defende que A Decisão é uma adaptação de uma obra do teatro Nô e que o Jovem Camarada não foi assassinado, mas passou por, de certa forma, um suicídio assistido: He killed himself. They supported him, but of course they had told him it were better when he disappeared, for him and them and the cause he also believed in.
No mesmo depoimento, Brecht aponta que A Decisão acompanha de forma próxima uma antiga história que mostra a devoção para com um ideal até a morte (follows quite closely this old story which shows the devotion for an ideal until death). Essa sucinta apresentação da obra que serve de base para o trabalho da Cia de Teatro Acidental traz consigo uma série de complexidades e nuances – talvez muito maiores do que uma leitura realizada com pressupostos assertivos sobre o que quer dizer o teatro brechtiano poderia apontar.
A própria ideia de peça didática é, conforme mais uma vez o prefácio de Kon para a publicação das dramaturgias da Acidental, um termo que já traz em si uma polêmica entre quem acusa o proselitismo redutor e autoritário e aqueles que viram nesses experimentos a parte mais atual da obra de Brecht: jogos abertos à intervenção de cada grupo que os aborda, pois não visam a educar o público, mas os próprios atores, que não aprendem uma doutrina pré-determinada, mas um pensar dialético em ação (até eventualmente divergindo do texto).
Pois o que Kon faz, alinhado à encenação dirigida por Maria Tendlau de E se a porta cair seguiremos sentados apenas mais visíveis, é precisamente reelaborar o texto de Brecht dialeticamente a partir do confronto com ele e com os tempos que correm. A investigação da inação contraposta ao modelo de ação brechtiano se afirma desde as primeiras palavras – senão diante da própria escolha do título – da obra: Temos muito o que dizer, queremos comunicar. Há que comunicar uma morte, a morte de algo que não necessariamente sabemos o que é.
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No pensamento visual de Renan Marcondes, a Cia Acidental distribui suas peças, pistas e evidências como que num tabuleiro. As escolhas da interpretação apontam continuamente para a necessidade de comunicar e a angústia da incerteza em torno do que efetivamente dizer; a distribuição dos textos corrobora uma intenção de produzir coralidades dentro da contemporaneidade virtual (com fronteiras cada vez mais tênues entre atuação digital e ações concretas) que inevitavelmente se dissolve em uma polifonia dissonante na coletividade cênica proposta, entre identidades particulares e marcadores bem definidos.
Em cena, Kon, Chico Lima, Mariana Dias, Mariana Otero e Ma Zink são as peças deste jogo cujo tabuleiro se desmonta antes mesmo de que se faça possível compreender as regras daquilo que ali se movimenta. Ali, são agitadores, coro de controle, jovem camarada, camponeses, juízes, executores; e fazem do público cúmplices, de algum modo, daquilo que nem se sabe, daquelas tantas desculpas que se pedem, do tanto que se move sem de fato mover nada.
A Cia de Teatro Acidental, aliás, durante toda a Trilogia dos afetos políticos, manteve em suas realizações uma importante percepção: a adaptação/atualização de um discurso cênico demanda uma renovação também formal. Assim, ao trazer A Decisão cem anos adiante, enquanto espelha seus quadros investiga o que se pode fazer a partir do que ali se apresenta.
Quando Brecht fala dos Ensinamentos dos clássicos, a Acidental evoca Bernard Koltès: é como se a solidão dos campos de algodão, dos escritos do francês, encontrasse hoje enquanto possibilidade apenas uma antinegociação; um fracasso da ação, um fracasso do desejo. No teatro besta confessado por Kon no prefácio já citado, nessa busca pelo pior teatro do mundo, E se a porta cair seguiremos sentados apenas mais visíveis se permite habitar consistentemente esse não-saber, compreendendo-o como necessidade nevrálgica para uma esquerda, um progressismo, que se observa e se autodiagnostica, fazendo do coletivo algo que os força ao esforço de abrir mão das certezas em prol de um processo aberto ao imprevisto, ao desconhecido.
Basta olhar para a janela (ou para a tela de nossos celulares) para notar que de muito pouco vale estarmos certos de nossas razões – Afinal, o saber que já dominamos não tem adiantado muito para dominarmos igualmente os rumos do mundo… Aliás, cabe apontar aqui para a insistência deste texto trazer reiteradas vezes as palavras de Kon: a publicação da editora Javali alinhada à estreia de E se a porta cair seguiremos sentados apenas mais visíveis se mostra mais do que oportuna, auspiciosa. Viabilizado pelo Prêmio Zé Renato de Teatro para a cidade de São Paulo, da Secretaria Municipal de Cultura, o livro é um bonito e marcante momento para quem acompanha as produções do teatro de grupo paulistano: nele, verifica-se o alinhamento entre proposições ético-políticas e os desenvolvimentos estéticos resultantes das pesquisas de um coletivo teatral.
Seguindo nos quadros de Brecht revisitados por Kon-Tendlau-Acidental, a Anulação, o segundo de A Decisão, já traz outro bom nó: ali, O Diretor da Casa do Partido afirma aos agitadores que eles não têm nome nem mãe, são folhas em branco sobre as quais a revolução escreve as suas instruções. Que a partir deste momento vocês não são mais ninguém, a partir deste momento, e talvez até o seu desaparecimento, vocês são operários desconhecidos. Pois em E se a porta cair seguiremos sentados apenas mais visíveis este é precisamente o momento da autoafirmação da identidade; Eu sou uma mulher negra/ Eu sou uma mulher branca/ Eu sou um homem branco trans/ Eu sou um homem branco cis etc.
O etc. da publicação parece se evidenciar como chave para o entendimento: na dialética proposta pela Cia de Teatro Acidental, não se trata de apresentar métodos corretos de entendimentos e lutas pelo que se acredita ser certo no mundo, mas pelo contrário. Nesta espécie de peça didática, o aprendizado está no movimento de não-saber. De se manter em dúvida, compreendendo que a superficialidade com a qual muitas vezes se encara a racionalidade é tanto sintoma quanto causa; tanto culpa quanto responsabilidade. O convite é atropelar tudo que é raso no que diz respeito aos afetos.
No debate entre A pequena e a grande injustiça, quarto movimento da Decisão, um jogo onde a Acidental tenta mobilizar a plateia – e a tentativa pode ser vista como constrangedora, e o envolvimento pode ser visto como constrangedor. Falar de tribunal das redes sociais pode soar como um lugar comum, mas não se pode também ignorar esses novos parlatórios e suas pretensas horizontalidades e potências de construir armadilhas e oposições muitas vezes falaciosas. Se em Brecht os agitadores solicitam ao camarada a distribuição de panfletos político-ideológicos bem demarcados em torno de suas proposições, em E se a porta cair o que se distribui ao público são desenhos de colorir. Ali estão aristocratas em guilhotinas e imagens associadas à propaganda comunista, mas o que isso quer dizer?
E se a porta cair seguiremos sentados apenas mais visíveis diverte enquanto traz à tona a desconfortante percepção de que faltam combatentes e sobram culpas. São tentativas de construção de um nós emaranhadas numa feitura e desenlace de nós. A decisão paira no ar: juízes, carrascos e vítimas coletivamente preferindo não existir diante do desmontar dissonante de um tabuleiro cujas regras, mesmo bem compreendidas, parecem fazer do próximo movimento do jogo uma dolorosa impossibilidade.
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ficha técnica E se a porta cair seguiremos sentados apenas mais visíveis Cia de Teatro Acidental texto ARTUR KON direção MARIA TENDLAU elenco ARTUR KON, CHICO LIMA, MARIANA DIAS, MARIANA OTERO e MA ZINK interlocutores CLAYTON MARIANO e JANAÍNA LEITE pensamento visual e fotos RENAN MARCONDES concepção sonora CIA DE TEATRO ACIDENTAL e ELIAS MENDEZ cenotécnico GUILHERME SCHULTZ iluminação CAUÊ GOUVEIA colaboração teórica ALESSANDRA AFFORTUNATI MARTINS produção ANACRIS MEDINA