pequenas notas para [mim n]os tempos que correm
anotações (talvez pouco organizadas) de amilton de azevedo sobre “É corpo”, proposta apresentada no Célia Helena no EPA 2019/1
– desde que entrei na graduação em teatro no Célia Helena, em 2011, me aproximei muito do EPA — encontro de propostas artísticas; evento semestral da escola de livre criação e apresentação para os alunos. num movimento anárquico, todas as salas (e banheiros, árvores, vagas de garagem…) ficam à disposição para a ocupação por propostas artísticas de alunos e ex-alunos. não há curadoria — o que, para a produção da qual fiz parte por anos, é sempre uma loucura: o encaixe de horários, a logística de equipamentos, os ‘anjos’ que cuidam de cada sala…
– desde então, me debrucei muitas vezes na organização do evento; pelo que recordo, de 2011 à 2015 estive na equipe, com maior ou menor participação, que produzia o EPA — divulgação, horários, técnica, enfim; éramos faz-tudo, na maioria alunos, com um lindo apoio da escola que respeitava o caráter livre do evento. de lá para cá, tantas vezes fiquei responsável por um espaço específico: o que se convencionou chamar de Galpão 462.
– assim, pude acompanhar, entre o auxílio em montagens e desmontagens de espaço e insistências para que tudo acontecesse no horário previsto (certa ordem na anarquia), uma miríade de propostas de alunas, alunos e alunes, dos mais diversos temas e linguagens. em comum, no EPA, o que se vê é uma ânsia por dizer o engasgado. há de se considerar todo o contexto de um evento cujas apresentações não anseiam ser vistas enquanto produtos acabados; mas muitas vezes demonstrações de processos abertos, esboços, ideias tiradas do papel.
– quando comecei a dar aulas na escola, acabei por me afastar da organização do EPA; passei a ser público. particularmente, ainda é estranho para mim chegar no evento pouco sabendo sobre o que acontece — lembro-me de, semestre após semestre, junto à tantas pessoas fundamentais, passar horas, dias, semanas, encaixando horários de modo a fazer que tudo funcionasse. ao entrar no Célia Helena sem ter noção de quantas inscrições tivemos (penso que o EPA segue batendo recordes: há menos de 10 anos, fazíamos eventos com cerca de 30 inscrições e um público reduzido; hoje sem dúvidas a média de propostas não fica abaixo de 60, com algumas apresentações disputadíssimas) fico um pouco perdido. e confesso que para a presente edição, do primeiro semestre de 2019, fui com uma proposta a assistir em mente.
– dentro do Núcleo de Estudos da Presença, coordenado por (minha mãe) Sônia Machado de Azevedo, uma pesquisa estava sendo desenvolvida. “É corpo”, nomeia o programa com os horários de todas as apresentações. um grupo de alunas e alunos decidiu (re)visitar a (já tão explorada) nudez. e que bom que o fizeram. que bom que o fizeram. que maravilhoso o que fizeram.
– a professora doutora da UFRGS Patricia Leonardelli recentemente publicou em seu facebook um texto chamado ‘manifesto da universidade pelada’. ali, diz: ‘na minha universidade tem gente pelada pra caramba, sr. ministro. sabe porque? por que nossos corpos são infinitamente mais complexos que a sua retórica ignorante, pseudo-cristã e medieval pode conceber’. e segue: ‘porque nós desejamos a liberdade do pensamento corpóreo complexo […] quanto mais se dá afeto, mais se tem’.
– muito já foi feito da nudez em arte. desde retratos renascentistas até performances agressivas, o corpo nu é fonte inesgotável de inspiração, resistência e (lembrete de) existência. e ainda importa, e faz sentido voltar para algo tão básico: o corpo que somos — não apenas que habitamos, mas que somos. não há mais, nem cabe, distinção entre corpo e mente; entre quem sou e o corpo que ‘tenho’. somos este todo tantas vezes cindido, tantas vezes em descompasso. e isso ainda interessa: “É corpo” foi um acontecimento neste EPA; o Galpão 462 transbordava de gente querendo ver o que é corpo.
– e já estavam lá. ao chão, no escuro, corpos nus empilhados. a imagem construída em contornos sombrios assemelhava-se à uma vala comum. na primeira intervenção da cena, um performer munido de uma lanterna como que descobria aqueles corpos-objetos, corpos-sem-vida. no entanto, ao iluminar os rostos, os olhos abertos insistiam em retribuir nossa curiosidade ao vê-los. o performer-analista apalpava, inquieto, às partes várias. genitais, cabeças, pernas, pele. partes de algo.
– na sequência, as ações cotidianas. corpos nus existindo. escovando dentes, lendo jornais, bebendo água, abrindo um guarda chuva: isto é um corpo, um por vez, ainda como espécie de demonstração científica. corpos com pênis, corpos com vaginas, corpos com seios, corpos magros, corpos gordos… isto é um corpo. e então, segue um corpo primitivo; em quatro apoios, agitado, fugaz. depois, corpos que se encaixam: a ‘dialética das relações’.
– naturalizar o corpo como algo dado. como algo plural, prenhe de potências tantas; naturalizar afetos. corpos existindo, encaixando, passeando uns pelos outros. e desnaturalizar o sexual! que escolha interessante do grupo. pensar nos toques erógenos, provocativos, como mecânicos descompassa nossa recepção e nossa expectativa sobre nossos corpos também. tornar patético é quase um exagero, mas reafirma o tanto que se pode ser-fazer-haver com um corpo dois corpos tantos corpos.
– e então, o tango. um casal nu dança tango. é simples. é despretensioso. é divertido. mas significa muito; engatilha muitas sensações. é brilhante, a seu modo. quando o nu é central mas se entende periférico, toda ação implicada nele se ressignifica. ainda em postura ‘de tango’ (o que quer que seja isso) os corpos passam a se amarrar ali. literalmente, com uma corda. os todos corpos estão inevitavelmente enlaçados. é bonito (e talvez triste ao mesmo tempo). é bonito existir ali, amarrados, entremeados.
– por fim os corpos se libertam e se descobrem por si. a liberdade de ser o seu corpo, descobri-lo, habitá-lo. habitá-lo por inteiro, sem censuras de si. habitar nosso tempo neste corpo que grita (sem palavras) por ser e existir. a nudez já foi uma forma de chocar; o que era a nudez, o que é a nudez?
– a nudez hoje se revela para mim um alento e uma potência. não por ela, mas por suas intenções e reflexões. um alento ao ver uma juventude que INSISTE, apesar dos tempos que correm, INSISTE em se descobrir; INSISTE em se provocar, INSISTE em se investigar. INSISTE em ser. e o alento se multiplica no agradecimento. “tratemos liberdade com sensibilidade”, diz Leila de Noce, uma das propositoras. dos corpos empilhados sujeitos a análise de um olhar exterior à busca pelo grito singular de sua própria existência. “tratemos liberdade com sensibilidade”.