oásis e miragens
quinto texto produzido no contexto do ciclo de debates Crítica Isolada, idealizado por Tudo, Menos Uma Crítica e ruína acesa, com realização do Sesc Pinheiros. acompanhe as ações por meio do instagram @critica_isolada.
O terceiro encontro do Crítica Isolada foi um bálsamo para estes tempos. Saí encantado, de verdade. As falas de Daniele Avila Small, idealizadora e editora do Questão de Crítica (RJ), e de Jocianny Caetano, representando o Coletivo Filé de Críticas (AL), trouxeram para mim novas possibilidades de olhar para o momento presente. O contexto não é leve, mas é necessário, como escreveu Ítalo Calvino ao final de Cidades Invisíveis, “tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.”
É o próprio Calvino que, em Seis propostas para o novo milênio, trata da leveza como reação ao peso de viver; um ato, então, de resistência. De algum modo, sinto que foi essa leveza que o nosso encontro, cujo tema era Pensamento e Formação, tangenciou. No mesmo caminho, cruzo com as provocações deixadas por Daniele e Jocianny.
Como podemos, com esse corpus crítico imenso, ecologizar juntos esse ambiente do teatro online?
Daniele Avila Small
A tessitura crítica está refletindo sobre a dilatação do alcance de sua escrita em territórios diversos?
Jocianny Caetano
No tatear que é a construção deste(s) texto(s), volto-me à minha produção crítica para buscar talvez não responder, mas povoar uma reflexão que parte destas perguntas. O ruína acesa completa quatro anos no próximo sábado, dia 17 de abril de 2021. Desde então, nele e em outros veículos, escrevi cerca de um texto crítico sobre teatro por semana. Creio que seja uma boa média – ainda mais considerando a queda vertiginosa de minha produção no último ano.
É exatamente para ele que desejo olhar a partir das provocações feitas. Foram 34 textos publicados em confinamento. Destes, dez foram sobre cinema – o primeiro durante a pandemia foi em 29/03, a partir do filme O Poço, da Netflix – e três sobre séries audiovisuais. Também publiquei uma reflexão em torno do II FESTÃO, festival regional de teatro organizado pela Rede Teatro — Metropolitana de Sorocaba, que ocorreu no final de 2019 na cidade de Pilar do Sul, no interior do estado de São Paulo.
Entre os outros vinte textos, estão o #1 e o #4 deste Crítica Isolada, uma retrospectiva de 2020 e uma crítica sobre o espetáculo Protocolo Volpone, única obra assistida presencialmente nos últimos doze meses. Também publiquei três ensaios (na falta de um nome melhor) sobre questões do período, a partir de reações pontuais ou inquietações amplas, além de perspectivas para 2021. Restam, então, treze materiais que gostaria de abordar com mais calma nesta reflexão.
Em 19 de maio de 2020, lancei oficialmente o site do ruína acesa. Até então, meus textos estavam espalhados entre uma página no Facebook e um perfil no Medium (desativado). Além de organizar um acervo com toda a minha produção, publiquei um texto inédito: o primeiro onde abordo os experimentos que vinham surgindo nos primeiros meses do isolamento. Em da emergência dos possíveis busco elaborar uma reflexão ampla sobre as transformações que começavam a surgir nas criações e produções dentro do contexto virtual. Cito oito obras ao longo do texto; são seis de São Paulo, uma do Rio de Janeiro e uma de Pernambuco.
Os outros doze materiais são críticas de trabalhos online. Olho para os últimos meses e lembro o quanto se falou na descentralização possível; na diminuição das distâncias geográficas entre criações e fruições, artistas e públicos. E antes de propor um nós que ecologize este diverso, amplo e plural ambiente online, penso sobre os alcances de minha própria tessitura.
Foram seis críticas de obras transmitidas de São Paulo, três do Rio de Janeiro, uma de Minas Gerais, uma do Paraná e uma de Pernambuco. Na soma-síntese, 12 SP, 4 RJ, 2 PE, 1 MG, 1 PR. Escrevi sobre dezessete trabalhos do sudeste, um do sul e dois do nordeste. Mantive boa parte dos hábitos anteriores à pandemia, permanecendo em um circuito simbólico ao qual estava, em grande parte, acostumado. Assim, também, legitimando, em alguma medida, regimes de (in)visibilidade.
Esta não é uma tentativa de mea culpa, nem uma expiação pública. Mas, penso, por que isso aconteceu? Sendo eu o meu próprio editor, o ruína acesa uma plataforma independente, o que fez as minhas escolhas se desenharem de tal modo? É evidente que não saberia responder isso de forma definitiva, mas entendo que existem diversos fatores para que isso aconteça.
Geralmente, parte de minha seleção vem de releases que recebo via e-mail. Já há aí um corte, sem dúvidas. Há também predileções, sejam de ordem estética, ideológica, afetiva, sensível, enfim; artistas e grupos que inquietam, interessam (e que acabam sendo em sua maioria os que estavam, de algum modo, já próximos) a mim. Além disso, assisti a muitos trabalhos sobre os quais não escrevi por motivos diversos, assim como deixei de assistir a tantos outros que pretendia.
A remuneração advinda do meu fazer crítico no ruína acesa está atrelada à uma campanha de colaboração contínua chamada manter a ruína acesa, criada em janeiro de 2020. Sou profundamente grato a todas as pessoas que me apoiam. Ao mesmo tempo, preciso sempre articular outros trabalhos para que as contas fechem ao final do mês. E certamente não foi um ano fácil para ninguém.
Como todes nós, creio eu, oscilei – e sigo oscilando – muito durante o período de isolamento. Uma frequência organizada jamais foi característica do ruína acesa, mas a pandemia bagunçou ainda mais as motivações e possibilidades. Talvez eu esteja distante das provocações de Daniele e Jocianny, lá do início do texto, mas me parece um caminho que faz sentido – ou mesmo um sentido que vai se produzindo ao longo destas palavras. Pensamento e Formação. Olho para a minha produção, para os (não-)escritos, e penso sobre a trajetória de nosso encontro, sobre os acúmulos do Crítica Isolada.
De algum modo, os temas são todos transversantes e estão se empilhando em uma reflexão que já está ficando talvez demasiado longa. Será? Volto a pensar na dilatação dos alcances possíveis à uma tessitura crítica. Nesse sentido, sair das redes sociais e criar um website parece um passo atrás. Aonde chegarão esses textos longos que, segundo um plugin me diz, trazem uma pontuação baixíssima de legibilidade?
Onde estou indo com a minha tessitura? Onde desejo ir? Qual é o estatuto do ruína acesa; qual é o estatuto da minha crítica? Meu projeto? O que desejo com isso? Que dispositivos – ou armadilhas – posso criar para mim mesmo, no sentido de fomentar este caminhar? Ouvir os relatos em torno da criação de coletivos, veículos e plataformas críticas é por um lado bonito e por outro bastante desestabilizador – no melhor sentido. Já havia me colocado em xeque lendo os diversos textos do Dossiê Biocrítica, do Teatrojornal, e me vejo novamente nesta – deliciosa e inquieta – posição durante este Crítica Isolada.
Ao mesmo tempo, me sinto acolhido e contemplado pelas falas das pessoas participantes dos encontros. Convidades, públicos, meu parceiro de mediação Fernando Pivotto. Não porque todes pensamos iguais, mas porque tateamos um pensar juntes, um olhar que é singular mas que também pode almejar estabelecer-se em redes, dar forma e vazão a esse corpus crítico e agir sobre o online. De forma ética, sim, e fundamentalmente movida pela vontade de fazê-lo.
Peço, aqui, a licença de parafrasear nossas convidadas. Pois Jocianny falou sobre comer primeiro o prato que nos foi oferecido. E também citou Chitãozinho e Xororó para complementar um pensamento sobre a ex-posição necessária à experiência. Daniele nos presenteou com a resposta mais simples, verdadeira e bonita para a pergunta recorrente de “por que crítica?”: é o que eu tenho vontade de fazer com as horas dos meus dias.
Leio mais uma vez as provocações. Penso sobre o que eu posso dizer diante disso. Um eu que dentro deste Crítica Isolada se viu Tudo, Menos Isolado (em um trocadilho infame com a página de Fernando Pivotto); que passa a vislumbrar ainda que de modo difuso tantas possibilidades de nós. O ruína acesa habita uma minúscula parcela de um território em constante dilatação. A velocidade da crítica, creio, não é, nem será, e nem deveria tentar ser a das redes. Elas correm rápido demais. Mas, sim, todo artista tem de ir aonde o povo está. E o crítico pode ser também um artista, vice-versa, e deve ir aonde o artista está, aonde seu leitor está, talvez. Não sei.
Também não sei se o ambiente online pode ser visto como o deserto que atrai Lawrence da Arábia por ser limpo. É inóspito, sem dúvidas, e a crítica é, ou ao menos poderia ser, forte aliada em seu processo de ecologização. Mas não é limpo. É muitas vezes imundo e assustador. Na aridez do deserto que é a internet, o que mais se espalham são miragens – e que parecem sempre diferentes, a depender de quem as olha.
Mas há de ser possível pensar procedimentos, alianças, parcerias, possíveis. Não para uma adesão irrestrita, mas compreendendo que, atualizando Vianinha, cada vez que uma sala de Zoom recebe um experimento artístico, cada vez que uma obra é transmitida ao vivo via YouTube, soam trombetas no céu – trata-se de uma vitória da cultura, qualquer que seja o espetáculo. Ecologizar o ambiente exige vagar pelo deserto para reconhecê-lo e perceber o que de vida insiste em haver ali. Descobrindo – e construindo – os oásis possíveis.
Aparentemente há pouca ou nenhuma vida na aridez do deserto. No entanto e com o tempo vivendo nele você descobre o que está escondido atrás das aparências. Há muita vida nele, pode haver muita água abaixo da superfície e animais escondidos sob as pedras e muita vida também no ar. E o que dizer da imensidão do céu? Acho que com o tempo vamos treinando o olhar para descobrir a vida e a beleza. Isso sempre. E nesse momento trágico a vida como que se mostra pelo avesso. Talvez o teatro também. Pelo lado oculto, pelo que aparentemente não é. Parabéns pelo texto.