arquipélago, destaque, teatro

combater o oco, bailar con el buraco

crítica de ¡Cerrado!, do Grupo Pano. o ruína acesa faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Há um espectro do mal-estar que o próprio movimento de mobilização global esconde. Mas, das rachaduras da realidade, saem gritos. Saem os gritos do querer viver.” (Santiago López Petit em Breve tratado para atacar a realidade)

“(…) culturas de fresta; aquelas que driblam o padrão normativo e canônico e insinuam respostas inusitadas para sobreviver no meio que normalmente não as acolheria.” (Luiz Antonio Simas em O corpo encantado das ruas)

Una barra brava de payasos entra no espaço. A fanfarra toca e poderíamos estar no Monumental de Nuñez, no Defensores del Chaco, no Estádio Centenário ou enfrentando a altitude de La Paz. Como num jogo de Libertadores, “Toda vida és final en las américas“, grita um deles. “¡Sueña, Carajo!“, exclamam num convite entre o ódio, o desespero y la fiesta. ¡Cerrado!, novo trabalho do Grupo Pano, começa em altíssima voltagem e assim incrivelmente se sustenta por mais de duas horas.

Tudo se verá nasciendo de las frestas que se abrem ao entortar as linhas enferrujadas da América Latina. A encenação se organiza em tracks, como que em faixas de música, e há algo de um cabaré na sucessão de acontecimientos, dentre las histórias contadas e los delírios. A estrutura da obra, com direção e dramaturgia de Caio Silviano, rememora a forma literária de Eduardo Galeano (1940 – 2015), com suas crônicas entre o jornalístico e o mágico, muitas vezes sintetizadas em narrativas breves, de um ou dos parágrafos.



Há linhas que conduzem ¡Cerrado!, mas elas também se permitem curvar-se, quase que romper-se no meio da dança deste baile de los tiempos. Existe algo de linear na forma de contar, mas las líneas criam um emaranhado na ficção pois ali o tempo não é o tempo. Estamos num teatro, estamos em San Pablo del Deserto, estamos na boate del chefito Breton. O Grupo Pano dança sobre o abismo, fazendo da fresta possibilidade de festa, do teatro espaço de suspensão do cotidiano tal qual o rito. E assim, enfrenta a realidade.

É estranho buscar descrever do que habla ¡Cerrado!; talvez o ponto focal da dramaturgia seja a inspiração em um fato real do deserto do Atacama: uma lei municipal de San Pedro del Atacama proíbe a dança na cidade, exceto em casas noturnas que devem possuir uma licença cara e difícil de conseguir. Mas antes disso – talvez não cronologicamente, mas na obra – uma viajante encontra o Viejo criador das linhas da América Latina a fim de arrastar uma delas e fazer dali outro teatro. E então há também uma Bailaria que vive sem bailar, fuera del tiempo o en todos los tiempos. E se conta a história da colonização. 

Y todo lo que pasa se ordena, como en un sueño, na direção de um desejo de integração, que se realiza nos cruzos entre resgate e invenção de memórias em comum. Quando uma viajante chega a San Pablo del Deserto falando em português, estranha-se sua fala: ¡Cerrado! se habla y se hace en portuñol, una língua selvaje, del futuro, la língua de las diásporas y las migraciones intra-latinoamericanas. Por eso aca assim escrevemos sobre la obra. 

Pasages por la escena se dan como que en la lógica del sueño o delírio. Valderrama bate um pênalti. La estatua de la libertad traz a guerra. Darcy Ribeiro e Eduardo Galeano tomam cerveja em um bar. Margaret Tatcher lança decretos ao ar. Alguém acaricia as bolas do touro de Wall Street. Trabalhadores escutam o último discurso de Salvador Allende. O mundo, de óculos escuros, fuma um cigarro. Revolucionários dançam uma vitória ou uma derrota, quem sabe? Todo lo que pasa faz de ¡Cerrado! este contínuo bailar quase surrealista, como um caótico carnaval do tanto que emerge desta fenda fresta festa. Há uma organização própria, uma lógica outra que se constrói e de algum modo tudo se conecta; se emaranha.

Lo camiño se señala com as apachetas carregadas pela Bailarina. Os montículos de pedra deixados pelo deserto por povos andinos são vistos como oferendas à Pachamama – ou como forma de ordenação, demarcação de outra ordem, de antes de las líneas enferrujadas. Lembrar do que veio antes: “combater o esquecimento é uma das principais armas contra o desencante do mundo“, escreve Luiz Rufino em sua Pedagogia das Encruzilhadas. ¡Cerrado! é a tentativa de uma ficção outra, uma ¡escavación!, como repete insistentemente uma personagem; arqueologia de um buraco, investigação sobre os desertos que nos circundam e a tanta vida invisível que os habita e habitou.

Sons de um buraco negro ocupam a cena – a legenda aponta para su captura por el observatório ALMA, que se localiza em San Pedro de Atacama. O deserto chileno, em sua escuridão, faz brilhar a noite. Areia e pedras entre as estrelas e os corpos jamais encontrados de desaparecidos políticos da ditadura de Pinochet. Aí está o tamanho do buraco, entre beleza e horror.

O buraco, em ¡Cerrado!, aliás, no se explica. Há algo de contradição inerente a ele; é o abismo que nos contempla, é onde nos enfiamos, é a possibilidade de enfrentamento? Assim como no jogo entre memória e esquecimento, o Grupo Pano não se interessa em entregar soluções simples e respostas rápidas para o público: a encenação oferece los camiños, o engajamento da plateia é imediato e, assim como nos trabalhos anteriores do coletivo, a fruição e a imaginação são convocadas a preencher as lacunas e refletir sobre as questões colocadas pela obra. 

Em Pano. Fim. (2018), o teatro era em si o maestro do invisível, e algo oscilava entre o derrotismo e a esperança no fazer artístico diante da realidade. Já em Foi enquanto eu esperava a encomenda de um livro de Maiakovski que tive uma epifania sobre a revolução, o grupo voltava seu olhar para as teatralidades do poder, com bastante autocrítica, uma dose de cinismo e um humor irônico que conseguia confluir na direção da coragem do nós.

Do primeiro, a presença de uma espécie de cena-síntese reverbera aqui: a tragédia do pipoqueiro de Pano. Fim. como forma do fim do teatro tem algo em comum com a morte do burrico como resumo-provocação da chegada dos colonizadores ao nosso continente. Do segundo, um jogo com uma falsa performatividade: se ali lançava-se mão de uma metateatralidade que parecia emular um grau mínimo ou mesmo a ausência da ficção para a construção da relação com o público, em ¡Cerrado! há uma quebra que funciona quase como manifesto do discurso da encenação.

Durante a cena onde representam os acordos entre coroa espanhola e portuguesa, um dos atores diz estar passando mal e se recusa a seguir com a cena. Uma imensa bagunça sucede o ato, entre depoimentos e ofensas de toda sorte entre todo o elenco da obra. Depois do tanto dito e visto, a afirmação: “y asi se fundou el continente sul-americano“.

Deixando cada vez mais de lado as influências do teatro do absurdo que povoavam em especial el primeiro trabajo del grupo, já em Foi enquanto eu esperava era perceptível que a “pesquisa de linguagem parece verticalizar-se na direção das possibilidades de diferentes enquadramentos ficcionais em sua prática épico-narrativa“. Compreendendo a narratividade como potência central em torno da qual organizam-se outras linguagens cênicas, ¡Cerrado! é mais um passo en la camiñada do Pano. Algo de cabaré, de teatro de revista, palhaçaria, bonecos: tantos códigos, tantas histórias. Um caldeirão de referências de nuestra América e também a inventividade do próprio coletivo. 

Talvez lo que mais salte a los ojos do espectador de ¡Cerrado! seja a enérgica e constante presença de seus e suas intérpretes. Amanda Quintero, Cecília Barros, Ian Noppeney, Rafael Érnica, Alice Guêga, Bernardo Bibancos, Henrique Reis, Juliano Veríssimo, Barroso e Gabriela Sugui estão quase todo el tiempo em cena, seja assumindo personagens, seja fazendo parte da banda, seja como coro. La dirección de Silviano aprovecha el numeroso elenco para hacer del coro muchas cosas. A expressividade de ellos y ellas se cambia conforme la necesidad de cada cena, comentando, aderindo ou rechaçando aos discursos que se escuchan. Também, como banda, mantém a atmosfera da boate de los tiempos donde bailam la vida e la muerte. Com direção musical de Marco França e composições de Silviano, Barroso Eus e Bibancos, casi todes tocam algum instrumento e todos cantam. Bateria, percussão, rabeca, guitarra, baixo, trompete, berimbau; ritmos latinos se misturam entre os tracks nessa imensa fiesta que se torna a encenação de ¡Cerrado!

A direção de arte de Cecília Barros (Zé Valdir Albuquerque e Amanda Quintero assinam os adereços) traz algo de mambembe ao mesmo tempo que joga com uma grandiosidade na cenografia (com cenotecnia de Pity Santana) – uma constante dos trabalhos do Pano. Uma artesania um tanto tosca das montanhas se confronta com o esmero das máscaras (de Rafael Érnica e Caio Silviano); e subitamente um toque naturalista en la entrada de mitad de um carro real em cena. As imagens encantam, acompanhadas de uma operação espetacular da iluminação de Lui Seixas – que poderia encontrar recortes mais intimistas para alguns momentos. 

Do carro, mulheres em seu bagageiro camiñan de marcha ré há décadas. Em cada instante, parece habitar algo de poético e metafórico nos subtextos e frestas do que é dito, invocado, apresentado. Algumas vezes de modo mais cifrado, de outras mais direto. Toda a narrativa da ascenção de Berlugo parece cristalina de se compreender: uma ideia gananciosa torna-se semente do fascismo. Os interesses econômicos se tornam base para o cerceamento das liberdades. A eleição desta figura é democrática. O boneco é oco – tal qual a estrutura “de cebola” apresentada por Hannah Arendt para ilustrar as emanações e manutenções de poder neste sistema político autoritário – e então se confrontam formas de lidar com o vazio.

E que se dance com el vacío. Breton, nome emprestado do surrealista que dizia que “não é o medo da loucura que nos vai obrigar a hastear a meio-pau a bandeira da imaginação“, insiste em dançar, mesmo diante das proibições. Sueña, carajo. Que se dance escavando tudo que se destruiu e construiu; dentre as exclamações finais de ¡Cerrado!, a afirmação de que “¡venceremos la realidad!“. Olhar para o que existe, combater os vácuos do oco, bailar con el buraco, compreender que passado e futuro são líneas emaranhadas e que hay otras posibilidades.

logo do projeto arquipélago
ficha técnica:
¡Cerrado!

Elenco: Amanda Quintero, Cecília Barros, Ian Noppeney, Rafael Érnica, Alice Guêga, Bernardo Bibancos, Henrique Reis, Juliano Veríssimo, Barroso e Gabriela Sugui.
Diretor e Dramaturgo: Caio Silviano.
Direção Musical: Marco França.
Direção de Arte: Cecília Barros.
Iluminador: Lui Seixas.
Máscaras: Rafael Érnica e Caio Silviano.
Composições: Caio Silviano, Barroso Eus e Bernardo Bibancos.
Cenotécnico: Pity Santana.
Aderecista: Zé Valdir Albuquerque e Amanda Quintero.
Orientação de manipulação de bonecos: Marcela Arce.
Aprendiz: Marcela Lívier.
Apoio de Palco: Isabela Lourenço | Lou e Marcela Lívier.
Direção de Produção e produção executiva: Isadora Petrin (PiTô Produções).
Assessoria de imprensa: Adriana Balsanelli e Renato Fernandes.
Equipe de vídeo: Pedro Morales, Luiz Felipe Aranha, Rodrigo Nelli
Foto: Leekyung Kim
Apoio: Turma do Bem.
Realização: Grupo Pano, Cooperativa Paulista de Teatro, 18ª edição Prêmio Zé Renato e Secretaria Municipal de Cultura da cidade de São Paulo.

serviço:
¡Cerrado!

Estreia dia 6 de setembro, sexta-feira, às 20h no Teatro de Contêiner
Temporada: De 6 a 30 de Setembro. Prorrogação de 04 a 14 de outubro de 2024 - Sexta, sábado e segunda, às 20h e domingo, às 19h.
Duração: 135 minutos
Classificação: 16 anos.
Ingresso: R$30 (inteira) e R$15 (meia-entrada).
Bilheteria: Aberta 1 hora antes do espetáculo.

Teatro de Contêiner
R. dos Gusmões, 43 - Santa Ifigênia
Capacidade: 99 lugares.