teatro

dos esqueletos de lagartixa aos ninhos de pulga

crítica de Betta Splendens, de Tatiana Ribeiro, com realização da Cia La Desdeñosa e apresentado na 6ª Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos do CCSP.

Na apresentação de Dione Carlos para Betta Splendens – texto de Tatiana Ribeiro contemplada no edital da 6ª Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos Cênicos do Centro Cultural São Paulo (CCSP) – a artista reflete sobre as exigências do material para uma encenação que materialize a proposta da obra: como retirar o protagonismo do antropoceno para refletir sobre ele?

As vozes que narram vistas de janelas, cores de lâmpadas e acontecimentos cotidianos não são humanas. A ótica é a do peixe que nomeia a obra; os betta splendens são animais que vivem solitariamente em pequenos aquários e, ao menor sinal de companhia, entram em conflito.

As personagens são A Chave, A Agulha, O Grampo e O Peixe. Enquanto as três primeiras recebem o público e o acompanham num curto trajeto até adentrarem no Espaço Cênico Ademar Guerra, o famoso e multifacetado porão do CCSP. Na imensidão do lugar está a mesa da técnica e um palco-arquibancada montado por praticáveis, onde Ribeiro observa o movimento em suas vestes quase siderais. Ao público e à maior parte da ação cênica está reservado um canto repleto de vigas e pontos cegos, uma estrutura geralmente visível nas obras apresentadas no porão mas nem sempre muito aproveitada.

A escolha é logo compreendida: para além de uma metáfora que poderia se revelar óbvia e até mesmo banal, o aquário do peixe e os apartamentos-aquários, a solidão do betta e a solidão humana, há uma operação de descentramento efetivada pela encenação, que estrutura-se precisamente no olhar sobre o que se passa na periferia dos grandes acontecimentos; sobre as pequenas mortes nas margens da vida.

Na materialização de Betta Splendens, Tatiana Ribeiro é a autora, diretora, peixe, guitarrista, cantora, atriz: como um fungo, prosperei na morte para depois estar em uma outra vida possível. É no breve texto de apresentação da dramaturgia que o público pode conhecer a artista e o caráter biográfico da obra, uma autoficção que aborda a mente de uma pessoa deprimida – bem como o seu estigma na sociedade – que num possível destino final e trágico culmina no suicídio.

Nas vozes da chave, da agulha, do grampo e do peixe, não estaremos diretamente em contato com as angústias de Ribeiro. Betta Splendens é quase uma antiautoficção épica, onde uma pessoa, a autora, fala de si sem se colocar ao centro, compreendendo que está nas marginalidades da mente e do cotidiano o motor que realmente nos move; que a intersubjetividade pressupõe um coletivo que pode incluir até mesmo o que não é humano ao nosso redor.

Suícidio, depressão, estigmas: os grandes temas da obra se revelam a partir de perspectivas outras, dos esqueletos de lagartixa aos ninhos de pulga e às tantas ações incessantes que podem nos derrubar cotidianamente sem que nem nos demos conta. Enquanto Tatiana betta Ribeiro splendens observa, comenta e desenha sons e composições nas paisagens do vazio, Carol Gierwiatowski, Gabriela Gomes e Natália Martins constroem apartamentos, esquecimentos, aquários e confusões, fragmentando a narrativa em vozes que repetem, insistem, dissociam-se.

Na materialidade da cena, tudo às margens está no centro e aos poucos configura-se o apertado e apartado espaço que é muitas vezes a mente e que também parece ser a vida nas grandes cidades. Nesse sentido, a iluminação de Danielle Meireles é um acontecimento, fluindo entre atmosferas e recortes precisos que inserem o público na narrativa de forma orgânica e impressionante. 

A encenação de Ribeiro constrói sem pressa seus tempos, espaços e dimensões. O que é viver em aquários na cidade que pulsa em tudo ao redor? Dentro e fora coexistem no imenso porão, assim como na vida que enfrentamos diante de janelas, fechaduras, azulejos e abraços. Na vida e em seus acontecimentos sempre prestes a acontecer que já aconteceram. São peças do quebra-cabeça que é uma existência que parece sempre manter-se ocupada para ficar longe do viver. Que sujeitos-objetos são esses que dançam e dizem, constantemente pulsando entre euforia e melancolia?

[colabore com a produção crítica de amilton de azevedo: conheça a campanha de financiamento contínuo para manter a ruína acesa!]

ficha técnica
Betta Splendens
Texto e direção: Tatiana Ribeiro
Assistente de direção: Drica Czech
Elenco: Carol Gierwiatowski, Gabriela Gomes, Natália Martins e Tatiana Ribeiro
Trilha sonora original e direção musical: Camila Couto
Cenografia: Ana Luiza Secco
Cenotecnia e adereços: Evas Carretero e Josué Torres
Figurino: Murilo Rangel
Desenho e operação de luz: Danielle Meireles
Fotos: Cléo Martins
Arte gráfica: Centro Cultural São Paulo
Assessoria de imprensa e redes sociais: ComunArte
Produção: Gabi Costa
Apoio: Teatro do Incêndio (residência A Aurora é Coletiva)
Realização: Cia La Desdeñosa e Centro Cultural São Paulo