teatro

sentir no corpo os sismos dos tempos

relato crítico a partir de Antígona Sonora, espetáculo sonoro do Comitê Escondido Johann Fatzer.

Por quais ruínas caminham os mitos no contemporâneo? O Comitê Escondido Johann Fatzer traz as mãos sujas de terra de Antígona para a praça que vejo da minha janela e os olhos de Polinices para o espelho do meu quarto. Antígona Sonora, obra que ressoa onde mora o espectador-ouvinte, é um lembrete, em tempos de tantas telas, do poder aterrador do ouvir; da descrição, da imagem narrada.

O espetáculo sonoro fica disponível em períodos específicos da semana no site que também apresenta ao público registros em palavras, vídeos e imagens do processo de criação do trabalho. Ao propor recortes temporais para a fruição, a obra busca desde sua forma de exibição carregar consigo potências e características do fazer teatral.

Talvez essa seja a grande constante nas buscas dos trabalhos de artistas de teatro no período pandêmico: manter-se teatral, seja lá o que isso signifique dentro das impossibilidades destes tempos. Antígona Sonora nasce de um processo interrompido do Comitê, que trabalhava em Um memorial para Antígona no início de 2020.

Buscamos, e seguimos buscando, palavras que possam dar conta das experiências concebidas no último ano. São muitas as denominações, pois foram diversas as tentativas. Entre a transposição de obras pré-existentes para linguagens híbridas e novas criações, vimos emergir o teatro online (ou teatro digital), peças-filme, videopeças, experimentos sensoriais em confinamento, enfim: um tatear de nomes no tatear de formas.

Nas fichas técnicas, funções mais comuns ao cinema ganharam espaço, como o diretor de fotografia e a edição de vídeo. Também surgiu a operação de plataforma ao vivo, seja em obras no Zoom ou no Instagram. Mais próxima do trabalho do Comitê Escondido está Peça Invisível #1 – Nós não estamos em nenhum outro lugar, obra que faz um convite à travessia, entre outras experimentações que voltaram-se para o campo sonoro.

O elemento que une todos os trabalhos que vi no período, independente de linguagem, nomenclatura, tentativa? Meu quarto. E esta ação de não ir ao teatro exige um deslocamento de outra ordem. Ao menos é assim que me sinto. Sento diante do computador, coloco fones de ouvido sem fio (o que facilita a experiência, como se verificará ao longo deste texto), abro o site de Antígona Sonora e aperto o play. 

Na voz que fala diretamente a mim, um traço acolhedor se destaca. Ela me convida a imaginar o teatro. Me emociono ao fechar os olhos e visualizar plateia e palco. Por algum motivo, os imagino vazios. A distância entre o que se imagina e o que é será parte importante da fruição.

Na sintonia de frequências de rádio, ouço ruídos e tempos distintos. São notícias que localizam discursos e ideologias – e o tique-taque de um relógio. Os sons passeiam pelos fones; me sinto em movimento, mesmo que não no espaço. A primeira narradora é Ismene (Joy Catharina), a que sobreviveu, a que se tornou testemunha dos tempos, a que ouve, paralisada, a voz dos mortos.

Antígona Sonora traz documentos da história como fonte narrativa, característica comum aos trabalhos do Comitê. No texto de Julia Pedreira, Rafael de Sousa e do também diretor Vicente Antunes Ramos, a potência mítica amalgama-se a acontecimentos recentes. Em sua maioria, desastres e tragédias; da explosão no Líbano aos apagões no Amapá.

No trabalho, a narratividade é a força-motriz da criação e composição sonora assinada pelos três autores acompanhados de Danilo Arrabal, Eduardo Joly, Giovanna Monteiro, Isabela Bustamanti, Joy Catharina, Mariana Carvalho e Victor Rosa – o que não impede que, em certos momentos, a paisagem sonora tome para si o centro da ação.

Talvez resida neste fluxo a própria singularidade da obra: ao mesmo tempo que Antígona Sonora é sustentada por seu discurso crítico à violência de Estado, ela também convoca o corpo do espectador-ouvinte à ação sobre si próprio. Isso porque a escolha do Comitê é criar uma narrativa que se dirige diretamente a quem escuta. Constrói-se, assim, uma relação individual com o espetáculo sonoro. A dramaturgia fala comigo, e apenas comigo, naquele momento. Há, nesse sentido, um inevitável e justificado desconforto – principalmente no segundo dos quatro atos.

Se somos recebidos pela voz de Ismene e tornados cúmplices em seu testemunho, na sequência é o Guarda (Sousa) que levou Antígona que nos conta do silêncio barulhento da morte. No fundo da paisagem, o agudo pode remeter ao zunido que preenche tudo que se escuta após uma explosão. Os sons que sucedem são um doloroso, quiçá agressivo, lembrete dos tempos que vivemos. O que beira o insuportável aos poucos se torna um mantra, Om, a vibração primordial. Não chega a ser um alívio; penso em Tebas e sua peste, no hoje e nossa peste, penso no que virá. Sou convidado ao movimento. Permaneço imóvel.

E vem então Polinices (Arrabal) em suas memórias póstumas. Aqui aceito o convite e caminho pelo quarto. Olhando no espelho, lembro de Lévinas ao contemplar o meu próprio rosto. Para o filósofo, ele é o inescapável, o Infinito; a alteridade absoluta. Enquanto isso, Antígona Sonora propõe que o mito nos habita: Polinices podemos ser nós, ele existe em nossos olhos. Entre a ficção e os samples infelizmente reconhecíveis, o horror ganha rapidamente a materialidade de um rosto – este, menos indescritível. Sinto um mal-estar. Parecem minhas as entranhas devoradas.

Há vozes nas praças que insistem em vociferar suas proclamações; em governar seus genocídios e assassínios, além de tantos agentes prontos a cometê-los em nome do Estado. No quarto ato, o Comitê Escondido Johann Fatzer traz, finalmente, Antígona (Monteiro). O som metálico de sua voz traz consigo a força telúrica de quem nos fala do coração da terra. De lá, sente os abalos sísmicos de todos os tempos. São muitas. Ela é em si rebelião. Um mito evocado em tempos de cólera. Quando não o são, quando não o foram?

Ouço os gritos do movimento Black Lives Matter. Ouço a performance das chilenas do Las Tesis. Levanto. Meus pés fincados no chão, meu corpo todo em ação. Pulso. Danço com o que acontece ao meu redor. As tantas rebeliões passam a vibrar em mim enquanto ouço o que tem a dizer Antígona. A revolta é ruído, e Antígona Sonora me faz sentir no corpo os sismos dos tempos. Então tudo se acalma.

Vou à janela. Vejo uma rua sem saída, um entregador de comida, a garoa que só se percebe na luminosidade dos postes. Sinto o vento no meu rosto. Me sinto vivo. Penso em tanta gente que cabe em um mito. Penso em irmãos que se mataram em batalhas, penso em guerras civis. Lembro de Susan Sontag falando de imagens de guerra em Diante da dor dos outros. Percebo-me assombrado. Olho para a praça, para um gramado na praça. Olho para as minhas mãos, limpas, e para a chuva. Respiro profundamente. Tiro os fones de ouvido. Deixo que o impacto se demore. Ouvir é muito.

[colabore com a produção crítica de amilton de azevedo: conheça a campanha de financiamento contínuo para manter a ruína acesa!]

serviço:
Antígona Sonora
quintas, sextas e sábados – entre 19h e 21h30.
de 19 de agosto a 18 de setembro
https://antigonasonora.hotglue.me/
gratuito
duração: 38 minutos

ficha técnica:
criação e composição sonora: Danilo Arrabal, Eduardo Joly, Giovanna Monteiro, Isabela Bustamanti, Joy Catharina, Julia Pedreira, Mariana Carvalho, Rafael de Sousa, Vicente Antunes Ramos e Victor Rosa.
mixagem e montagem de áudio: Eduardo Joly, Mariana de Carvalho, Vicente Antunes Ramos e Victor Rosa
texto: Julia Pedreira, Rafael de Sousa e Vicente Antunes Ramos
direção: Vicente Antunes Ramos
vozes:
Ismene… Joy Catharina
Guarda… Rafael de Sousa
Polinices… Danilo Arrabal
Antígona… Giovanna Monteiro
Coro e ruídos… Julia Pedreira, Isabela Bustamanti e Victor Rosa
produção: Leonardo Birche
site, identidade visual e comunicação: TUWE