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para ninar o son(h)o dos brancos

crítica a partir de Um Jaguar por Noite, das 28 Patas Furiosas. este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Na barulheira de suas cidades, os brancos não sabem mais sonhar com os espíritos.” (Davi Kopenawa e Bruce Albert, A Queda do Céu)

O sono é uma afirmação irracional e intolerável de que pode haver limites à compatibilidade de seres vivos com as forças supostamente irresistíveis da modernização.” (Jonathan Crary, 24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono)

Logo nas primeiras páginas do prefácio de Eduardo Viveiros de Castro para “A Queda do Céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert, o antropólogo localiza uma transformação no significado do termo Yanomami napë: “(…) originalmente utilizado para definir a condição relacional e mutável de ‘inimigo’, passou a ter como referente prototípico os ‘Brancos’, isto é, os membros (de qualquer cor) daquelas sociedades nacionais que destruíram a autonomia política e a suficiência econômica do povo nativo de referência. O Outro sem mais, o inimigo por excelência e por essência, é o ‘Branco’“. É a partir desta perspectiva de outridade, subvertendo a acepção comum do Ocidental como universal, nos compreendendo como napë pë, que as 28 patas furiosas se aproximam do pensamento de povos originários em torno dos sonhos para criar-ninar Um Jaguar por Noite (2024).

Se “A Queda do Céu é um livro que “não apenas deve ser lido mas, sobretudo, precisa ser sonhado” (Hanna Limulja, O desejo dos outros), que é “sobre nós, dirigido a nós, os brasileiros que não se consideram índios [sic]” (Viveiros de Castro, no prefácio supracitado), Um Jaguar por Noite é um trabalho que busca, enquanto encenação, tornar-se vigília, habitar a suspensão deste entre: uma peça-sono, uma instalação-sonho. Nesta fricção entre a possibilidade de dormir e o compartilhamento do sonhar, emerge uma obra que versa, entre suas tantas materialidades, sobre o mundo da mercadoria e o espaço do onírico.



Para ninar o sono dos brancos, a narrativa sobre uma águia que não dorme por sete dias e a tentativa de tornar essa adaptação evolutiva em tecnologia, história utilizada por Jonathan Crary para introduzir suas ideias em “24/7 – Capitalismo tardio e os fins do sono“. Crary aponta que o sono, “um intervalo de tempo que não pode ser colonizado nem submetido a um mecanismo monolítico de lucratividade“, “é a única barreira restante, a única ‘condição natural’ persistente que o capitalismo não pode eliminar“. As 28 patas furiosas começam Um Jaguar por Noite como quem se deita aconchegado em torno de uma fogueira enquanto a noite cai. Uma pessoa deitada, com a cabeça apoiada sobre o painel luminoso, faz também daquele ambiente algo de laboratório; sobre o aparato, “machados largados no chão de uma casa“, modo como os brancos dormem sem sonhos segundo Kopenawa, mas também fósforos cujo fogo distorce a realidade e então qual o acordo que nos faz estar acordados? Como se dorme? Quais são as experiências e memórias em torno dos rituais construídos para esse momento?

Segundo Crary, o “sono moderno inclui o intervalo antes do sono“, momento onde capacidades perceptivas são reativadas e “readquirimos uma sensibilidade e capacidade de atenção a sensações tanto internas como externas em uma duração não mensurável“. Enquanto Isabel Wolfenson, Maíra do Nascimento, Pedro Stempniewski, Sofia Botelho e Valéria Rocha conversam, a estrutura quase-cotidiana da dramaturgia das 28 patas furiosas com Tadeu Renato é lançada no espaço com uma precisa modulação vocal (construído com colaboração de Natália Nery) de modo que a encenação de Wagner Antônio parece estabelecer-se enquanto este intervalo antes do sono em uma escolha de interpretações que remetem ao estado de vigília.

Dentro da pesquisa das 28 patas furiosas, desde a fundação do grupo em 2013, há um borrar de fronteiras entre teatro e artes visuais. Nos trabalhos, uma busca pela horizontalidade na relação entre as materialidades organizadas em cena – considerando também a atuação, a presença cênica, não apenas agente mas também agenciada por cenário, luz, som. Como afirmam em entrevista dada à revista digital Quarta Parede, desenvolveram em sua pesquisa continuada um treinamento chamado “Dramaturgia de Forças”, onde “o grupo experimenta a criação cênica a partir de uma perspectiva material“. Em Parede (2019), por exemplo, “a peça-instalação concebe suas distintas camadas buscando demover suas hierarquias, de modo que a lida do público com a obra parte da instabilização de sua proposta cênica” (trechos da crítica desta ruína acesa).

Assim, não há como dissociar os elementos que compõem Um Jaguar por Noite; até mesmo o elenco é tornado um na narrativa polifônica do ser Setegente. Também é difícil deixar de pensar em reminiscências das obras da trajetória das 28 patas no que se coloca na cena. A espécie de antiparangolé construída na sobreposição de tecidos vestindo Botelho lembra do jogo com os panos de A Macieira (2016); o colchão inflável enclausurando Stempniewski são de algum modo os qorpos emparedados de Parede; e muito do que se organiza no espaço cênico parte do que disparava a Parabólica dos Sonhos (2022), composições que moviam tempos e materialidades, como escrevi nas notas sobre o que transborda, relato de minha experiência com a instalação performativa.

Há uma necessidade da primeira pessoa aqui. Quando escrevi sobre a Parabólica, disse que tive vontade de perguntar ao motorista do Uber que me levava de volta para casa sobre seu sono, seus sonhos. Também, que gostaria de ter dormido durante a instalação – “que sonhos me habitariam no centro dessa Parabólica?“. Quando vi a abertura de Um Jaguar por Noite, durante a Farofa do Processo (2024), registrei em minhas tentativas de olhar novamente esse desejo: “Dois terços da obra está ali, as patas compartilham. No último terço, quero dormir. Anseio por isso. Será que o público de teatro que cochila na plateia sonha uma peça?“.

E a encenação gera efeitos hipnagógicos; enquanto a fogueira-laboratório cotidiana torna-se casa-dois-rios onírica, enquanto as falas tornam-se descrições do lugar do sonho e das ações do sonho, dormi por alguns instantes. Ao acordar enquanto o espaço era tornado outro, minha percepção temporal estava completamente alterada. Aqui cabe um parênteses, breve depoimento pessoal: tenho muita facilidade em entrar em estados de sono profundo; tenho sonhos complexos durante breves cochilos, os quais vivencio e geralmente me recordo com algum nível de detalhes, e nunca sei precisar o tempo que levei para dormir ou o tempo que levo para acordar.

A relação que tenho com meus sonhos é ampla. Desde experiências ligadas à espiritualidade até a vez que – juro que é verdade – acordei com a certeza de como consertar um celular que estava travado há dias pois sonhei com a solução. Também pratico a interpretação, levando sequências de imagens aparentemente absurdas para a sessão de análise e construindo conexões completamente palpáveis entre elas e meu momento de vida. Como bem diz um trecho de Um Jaguar por Noite, não dá pra achar que só Freud e Jung que sonham.

No contexto da longa e profunda pesquisa desenvolvida pelas 28 patas furiosas, ler, escutar, buscar outros meios; entender que “quem sonha apenas consigo nunca sai de si; e, nesse caso, o mundo se torna pequeno demais” (Limulja em O desejo dos outros, falando a partir de Kopenawa) e fazer de Um Jaguar por Noite uma obra para ninar o sonho dos brancos. dos napë pë, que, por não sonharem longe, “ignoram os pensamentos de outros povos e lugares e, portanto, não concebem outra forma de pensar capaz de ir além daquela que experimentam” (idem). 

Brancos, nós, de qualquer cor, ocidentais, ainda que das margens do capitalismo global, resultantes da expropriação, da colonização e da escravização que fundou a sociedade moderna, (sobre)viventes do mundo da mercadoria. “Os brancos, quando dormem, só devem ver suas esposas, seus filhos e suas mercadorias“, diz Kopenawa. Nós, napë pë, tão distantes deste Outro cujo mundo que se constrói aprendendo a sonhar para conhecer a floresta e as tantas outras terras. O sono na cidade, o sonho na sociedade; se o tempo do descanso é cada vez menor, o que dizer então do tempo do sonho, prática a ser cultivada e compartilhada?

Na mesma semana em que a temporada de estreia de Um Jaguar por Noite se encerrou no TUSP, o humorista Ricardo Araújo Pereira publicou uma coluna na Folha de S. Paulo intitulada O meu sonho é não me incomodarem com sonhos. Para Pereira, quem relata o próprio sonho à pessoas do seu convívio é uma “chata, egocêntrica“, e a própria matéria do sonho são “excrescenciazinhas” geradas pelo inconsciente do sonhante.

Um Jaguar por Noite é a busca pela possibilidade coletiva do sonho. Um convite a essa construção, inspirada por éticas comunitárias opostas à lógica da mercadoria – a própria ideia de “sonho” traz consigo, em seu uso cotidiano cooptado pelo capital, um lugar de conquistas atreladas ao consumo. Então, buscar outros sonhos possíveis para nós. Partir desta realidade, entender o tédio e a contemplação, inflar e esvaziar colchões, mover redemoinhos em rios dentro de vasilhas. Nas cores da materialidade, os painéis são dispositivos, cenário, iluminação (assinada por Antônio e operada por Felipe Fly). A atmosfera, composta também pela trilha de Júlia Ávila, faz de Um Jaguar por Noite uma obra onírica, espaço-tempo para se perder, intervalo antes do sono. O pacto da realidade e suas ficções, sabiás-laranjeira cantando de madrugada pelo barulho da cidade, fungadas e cheirar um ao outro como animais, galos e galinhas, sons de liquidificador.

Nas primeiras pessoas e nomes próprios algo da pesquisa emerge enquanto performatividade mas não se trata daquelas e daqueles ali, dizendo, daquelas individualidades. No todo que se move, o compartilhamento de uma busca de um aprendizado, de um entender-se napë pë, assumir o quase-ridículo de não saber sonhar, não se apropriar de um discurso outro mas manifestar o desejo de se aproximar dele. Ao mesmo tempo, o espaço do sono dentro de uma perspectiva materialista, ele como “interrupção sem concessões no roubo de nosso tempo pelo capitalismo“, e a busca por sonhar a terra, “pois ela tem coração e respira“. De Crary a Kopenawa, as 28 patas furiosas buscam ninar o son(h)o dos brancos.

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serviço
Um Jaguar por Noite
Classificação etária: Livre
Duração: 90 minutos
Data: 14 a 30 de junho de 2024
Sextas e sábados, às 21h e domingos, às 18h
Espaço 28 - Rua Anhaia, 987, Bom Retiro, São Paulo/ SP
Ingresso: R$30,00 (inteira) | R$15,00 (meia entrada)
Nas apresentações dos dias 21, 22, 23, 28, 29 e 30.06 >>> apresentações com interpretação em LIBRAS

ficha técnica
Um Jaguar por Noite
Idealização e realização - 28 Patas Furiosas
Dramaturgia: 28 Patas Furiosas e Tadeu Renato
Encenação, cenário e luz: Wagner Antônio
Texto: Tadeu Renato
Atuação: Isabel Wolfenson, Maíra do Nascimento, Pedro Stempniewski, Sofia Botelho e Valéria Rocha
Música: Júlia Ávila
Figurino: Valentina Soares
Colaboração no trabalho vocal: Natália Nery
Arte gráfica: Julia Valiengo
Direção técnica e assistência de direção: Dimitri Luppi
Equipe técnica e assistência de iluminação/cenografia: Camila Refinetti, Felipe Fly, Leo Sousa, Letícia Nanni e Lucas JP Santos
Registro em foto: Helena Wolfenson
Registro em vídeo: Marcos Yoshi
Assessoria de imprensa: Canal Aberto - Márcia Marques e Daniele Valério
Mídias sociais: Tadeu Ramos
Produção: Lud Picosque - Corpo Rastreado