teatro

trazer à tona o que aqui não está

crítica de Peça. concepção, texto e atuação de Marat Descartes; direção de Janaina Leite e colaboração de Nuno Ramos.

Toda criação é um pedido. Muitas vezes, de quem nem sabia que havia pedido por aquilo. Peça é um caótico e delicado lembrete de Marat Descartes sobre o que nos falta e o que nos preenche. O solo, dirigido por Janaina Leite e com a colaboração de Nuno Ramos, foi gestado como espetáculo teatral. O período de confinamento começou depois de ensaios presenciais; assim a obra recriou-se para o contexto atual.

Gisele Calazans assina a assistência de direção. Companheira de Descartes, também aparece brevemente na live apresentada por meio do canal da produtora Corpo Rastreado no YouTube e protagoniza um dos momentos de maior beleza do espetáculo em uma gravação. Pai, mãe, irmã, irmão e as filhas do ator também se fazem presentes – ou suas ausências são evocadas.

Nestes tempos de streamings, a velocidade parece jogar contra o aquietar-se tão bem-vindo à fruição. Em Peça, a transmissão se inicia dez minutos antes; uma contagem regressiva acompanhada da trilha sonora original de Natalia Mallo ajudam ao estabelecer uma atmosfera prévia à obra. No último minuto, instruções para espectadores que acompanham pelo celular: ajustar o brilho e o volume, utilizar fones de ouvido e fechar o chat ao vivo.

Descartes surge como que terminando de lavar a louça, caminha pela casa, fala com as filhas no quarto, Calazans o beija e deseja merda: o começo de Peça conduz o público por um compartilhamento cotidiano, tão frequente nas tantas lives por aí, fazendo crer por um instante que será mesmo essa a linguagem da obra.

Porém, ainda dentro desta narrativa íntima – reforçada pela escolha do banheiro como ambiente para a ação – que se estabelece, sutilmente Descartes transforma seu interlocutor e passa a assumidamente compor um enquadramento ficcional para a obra. A dramaturgia, assinada pelo ator, organiza-se organicamente, caminhando de um papo casual para o que seria uma sessão de análise.

Não demora muito para notar que esse tom confessional, sem grandes pretensões no sentido da construção de uma teatralidade, diz respeito meramente ao prólogo de Peça. O solo carrega uma grande complexidade, tanto técnica quanto estética, que se desvela aos poucos.

Há um caminho do cotidiano à fabulação; a direção de Leite compõe uma obra que opera no limiar entre realidade e ficção ao trazer os museus pessoais de Descartes para um universo que sobrepõe figuras históricas e familiares ao campo dos sonhos – marcadamente, dos pesadelos.

Peça é sobre o pesadelo em que vivemos; as tantas cisões geradas pelas múltiplas crises. Trata-se da formalização de impossibilidades. A virtualidade exacerbada da pandemia fricciona-se à ausência, de modo que parece difícil discernir as distâncias entre o que existe e o que não mais está aqui.

Para refletir sobre isso, Descartes evoca seu homônimo histórico. René Descartes foi o filósofo que chegou à formulação Cogito, ergo sum; penso, portanto sou. Os tempos que correm são tempos que cada vez mais pedem pela possibilidade da dúvida. Da racionalidade. Do método científico.

Descartes, interpretando Descartes, passa a questionar – ou, formular – a própria existência. Opõe-se à esta reflexão a outra parte do nome do ator. Jean-Paul Marat ficou reconhecido por seu ímpeto durante a Revolução Francesa. Suas ideias também são convidativas ao olharmos o contexto autoritário e a emergência do fascismo que assola todos os cantos do globo.

Marat, o radical, foi assassinado em sua banheira. Marat, o ator, recria essa imagem em gravação (Gabi Brites assina os vídeos), mas é ele quem empunha a adaga contra o próprio peito. É ele quem dá o fim a seu próprio ímpeto revolucionário. Não parece possível levar aqueles desejos para além dos limites de sua banheira.

De um lado, um pragmatismo violento – reação justa à violência dos tempos. De outro, a possibilidade de analisar profundamente o real e suas ilusões. A revolução almejada, a subjetividade enclausurada. Descartes comenta quantas vezes já contou, ao longo da vida, a história de seu nome. Em Peça, ele não a conta; projeta-se como o embate entre duas forças que desenha opostas.

Quando diz as horas ou mostra a tela do celular, Descartes busca insistentemente provar que existe; que existe conosco, seus observadores. Quando dirige determinado até o Teatro Cacilda Becker, Marat é guiado por seus impulsos e enfrenta (ou foge de) seus inimigos do povo, mesmo que no terreno do pesadelo.

Pois nem em sonho a vida nos escapa. Na reorganização de memórias e desejos de futuro de seu protagonista, Peça lembra do mínimo necessário para o teatro e para viver de verdade. Erguendo museus efêmeros da história e mausoléus familiares, Descartes recusa a linearidade na narrativa de suas perdas; resgata os momentos dos que se foram, mas também das cheganças.

Algo de insólito permeia a obra, tanto em imagens de seu acervo pessoal quanto em momentos do ao vivo. Com a iluminação de Marisa Bentivegna (que assina também cenário) e alguns dos enquadramentos da câmera, partes do corpo de Descartes tornam-se sujeitos. Como se certas coisas fossem difíceis de se dizer por inteiro.

O rosto, nesse sentido, ganha dimensões de infinito. Afirma-se enquanto todo um mundo imaginário, real; passado, presente e futuro. Seu olhar acaba por ser, de certo modo, o pedido que dá nome à Peça. O verbo torna-se quase um rogativo. Peça para o mundo; ouça o que ele responde.

Entremeada na complexa trajetória do espetáculo está uma delicadeza sem tamanho. Descartes nos conta e nos mostra os momentos de sua vida em que segurou o mundo nas mãos. Antes da partida, no momento da chegada. Morte, morte, vida. Peça, mundo: mesmo entre essa inescapável presença virtual e as tantas ausências irremediáveis, ainda havemos de ouvir.