performance, teatro

a trava da bicicleta

crítica de TRAVED, palestra-performance em realidade virtual de Dodi Leal e Robson Catalunha

Ideias que merecem ser espalhadas. O slogan da organização sem fins lucrativos TED é bonito e revigorante. Mas quem determina esse merecimento? A sigla, que evoca tecnologia, entretenimento e design, já não abarca todas as áreas por onde pessoas dos mais variados lugares do mundo navegam ao longo de suas falas sintéticas – até 18 minutos – e poderosas, como dizem em seu site. E quando as ideias travam? Ou melhor: e quando as ideias são de uma trava? TRAVED, obra criada em realidade virtual (VR) por Dodi Leal (atuação e dramaturgia) e Robson Catalunha (direção e roteiro), nasce destas provocações.

Em outubro de 2021, Leal publicou em seu Instagram o curta-metragem tenho receio de teorias que não dançam (com direção e edição de Gau Saraiva), onde a multiartista apresenta algumas das temáticas presentes em TRAVED. Com sua identidade de gênero ambiental, a travesti, transdanger, faz dançar suas palavras e pesquisas, propondo jogos semântico-estético-políticos na lida com conceitos como o próprio teatro; um movimento do pós ao pó para que emerja então a teatra em suas possibilidades de travessia.

TRAVED não é diferente: essencialmente uma palestra-performance, a dramaturgia se organiza enquanto artigo acadêmico, partindo do texto inédito Biotecnologias da Cena: Generética do Corpoluz e Filosofia Estética das Encruzitravas, incluindo citações no formato autor-ano nas falas da atuadora. Em operação epistransmológica, Leal traz para a cena virtual suas fabulações travestis na lida entre pesquisa e biografia. 

No palco, cadeiras giratórias para o pequeno público, uma escada que parece sugerir ações ligadas à iluminação da cena e a performer, visivelmente emocionada enquanto canta Força Estranha, tombada. Ela e a bicicleta são uma só queda. A imagem da ciclista será recorrente na realidade virtual; um jogo entre a trava que pedala, a correia travada e a imagem que trava contra um tempo cis-ciclo.

Ao colocar o óculos de VR, vemos o mesmo palco. Dodi agora é duas, analista e analisanda, em telas dentro da tela; em palcos dentro dos palcos. Dali somos enviados para um parque. TRAVED esteve em cartaz no Centro Cultural da Diversidade, no Itaim Bibi, próximo ao Parque do Povo. É lá que Leal toma um drink. Neste diálogo entre os espaços reais e a virtualidade da cena, há muito a se perguntar – de que povo é aquele parque? Quem são aqueles destinados a filosofar enquanto bebericam um negocinho sob o céu azul, tomando um sol?

No artigo-dramaturgia de Leal, a luz está entre os temas centrais. A autora de Luzvesti aborda a iluminação enquanto matéria orgânica e constrói pontes entre possibilidades biotecnológicas de relacionar corpos e virtualidades – uma discussão ampliada pelo contexto pandêmico, onde nos vemos cada vez mais dependente dos pixels como unidade mínima não apenas de cor, mas de existência. E quando a imagem trava?

A hesitação dos pixels imóveis na tela é uma encruzitrava: horizonte de possibilidades de romper com a lógica cisprodutiva da sociedade contemporânea. TRAVED traz o alinhavar de uma imensa complexidade ao mesmo tempo em que Leal conversa consigo, toma seu drink ou pedala uma bicicleta e o espectador se vê livre para girar em torno do próprio eixo e olhar ao redor.

Entre a paisagem vista e a que se desenha a partir do texto, há um abismo mas também um convite – para que a teoria dance, talvez; para que o público exista neste espaço entre o que se experiencia na realidade virtual e a virtualidade do real. É neste entre que habita a palestra, a performance, a tecnologia, o corpo, a artista. Leal fabula narrativas outras em diálogo com a luz do sol, o gramado do parque, a ciclovia na margem do rio, o palco do Teatro de Arena Eugênio Kusnet, o quintal da casa de sua mãe. 

No roteiro de Catalunha, os planos brincam entre si, nas suspensões e enquadramentos da ficção, da pesquisa, da vida de Leal. Sua transição – ou, como ela nomeia, traição – de gênero é incorporada ao discurso cênico de forma orgânica quando se compreende a força (estranha) do signo da bicicleta. Um acidente; uma correia que trava e dali em diante o corre da trava.

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ficha técnica
TRAVED
Atuação e dramaturgia: Dodi Leal / Direção e roteiro: Robson Catalunha / Artista convidada: Renata Carvalho / Captação de vídeo em 360°: André Stefano / Edição de vídeo: Rodrigo Rímoli / Design Gráfico: Cassiano Pinheiro Maciel / Produção: Guttervil / Assessoria de imprensa: Robson Catalunha / Fotos e teaser: Gau Saraiva.