o grito punk dos corações outsiders (ou construir trincheiras para utopias junkies)
crítica de Res Publica 2023, da Motosserra Perfumada.
[com colaboração de Andréa Martinelli na edição]
A Motosserra Perfumada teve a temporada de estreia de Res Pública 2023 cancelada por Roberto Alvim. Sob a justificativa de “falta de qualidade artística” atestada apenas pela leitura de uma sinopse, acendeu-se de vez o alerta de que o país está, como o diretor de artes cênicas da Funarte afirma, em uma “guerra cultural”.
A arma do governo têm sido, muitas vezes, a censura. Seja no cinema, com a suspensão do edital que contemplaria filmes LGBTQ+, seja em outras instâncias do poder. Na câmara dos vereadores de São Paulo, surgem projetos de lei como o de Fernando Holiday que não só desconfigura a Lei de Fomento ao Teatro da cidade de São Paulo, mas praticamente a enterra. O PL 458/2019, tal qual publicado no Diário Oficial em 02 de agosto de 2019, determina que “é vedada a aprovação de projeto que queira promover agenda política ou beneficiar de qualquer modo grupo político ou corrente ideológica” (na versão presente no site da Câmara, republicada a pedido do vereador, tal item foi suprimido).
Há uma assunção entre a ingenuidade e a desonestidade de que existe neutralidade no campo artístico — assim como o movimento Escola sem Partido também carrega essa pressuposição para a educação. É como se ideológicos fossem apenas os outros. Ora, se Augusto Boal insere em sua versão de A Tempestade de Shakespeare uma crítica contundente à colonização e às artimanhas do capital, podemos olhar impunemente para a figura de Próspero aprisionando Sycorax e escravizando Caliban no original como se aí não houvesse também um dado político?
O teatro brasileiro tornou-se forma de resistência artística (e militante) nos anos da ditadura civil-militar do país, buscando enfrentar — e contornar — a censura a partir de pesquisas de linguagem, ainda que muitas vezes impedido por prisões e exílios forçados. A própria Lei de Fomento nasce do movimento Arte Contra a Barbárie, uma reação às práticas neoliberais sendo aplicadas no campo cultural na década de 1990, e floresce precisamente enquanto possibilidade de promover pesquisa continuada a grupos independentes. Tal ação tem caráter ético, político e estético, de maneira quase indissociável.
Ainda que hajam crises e questionamentos constantes acerca dos rumos do Fomento e dos tantos grupos que surgiram e se consolidaram a partir dele, o que se vê é uma cena efervescente no contexto do teatro de grupo na cidade. Coletivos que repensam suas práxis a partir de novas teorias, conceitos, epistemologias e corpos; tendo uma presença cada vez maior de debates que interseccionam raça, gênero e classe, nas mais diversas produções e compartilhamentos de pesquisa.
Nesse contexto, o que começa a tomar forma nas montagens construídas na égide deste bolsonarismo que não apenas constrange e violenta das casas de governo, mas que se encontra pulverizado em uma população que passa a adotar sem nenhum pudor pensamentos e práticas protofascistas, é uma reflexão que volta o seu olhar para o próprio contexto.
Espetáculos que buscam construir diálogos dentro dos campos progressistas começam a coabitar a cena teatral paulistana com obras de franca resistência. É o caso do curioso Argumento contra a existência de inteligência no cone sul, do Coletivo Labirinto, por exemplo — o dramaturgo uruguaio Santiago Sanguinetti escreveu a obra no contexto de seu país, governado pela esquerda mas passando por crises no poder.
De certo modo, esta reflexão endógena está presente no trabalho da Motosserra Perfumada, escrito e dirigido por Biagio Pecorelli (que também atua). O porão do Centro Cultural São Paulo (CCSP), equipamento público da capital paulistana que recebeu a obra após a censura da Funarte, se torna essa Res Publica 2023. O número no título refere-se ao ano que se inicia durante a ação da peça — os três quadros se passam em torno do réveillon.
A “coisa pública” do título carrega consigo diversas camadas de significação que operam de forma ora organizada, ora caótica na encenação de Pecorelli. É o nome da república onde vivem as personagens, figuras marginalizadas, corações outsiders, como se apresentam no prólogo. É o bairro, no centro de São Paulo, onde está essa residência. É o país, tomado de assalto por forças patrióticas (proto?)fascistas — a Anaconda Brazil. E é, de modo mais sutil, a República de Platão, onde a arte é vista como degenerada e os artistas estão exilados.
O prólogo, no canto do Espaço Ademar Guerra do CCSP, é um pouco difícil de acompanhar pela aglomeração do público e a acústica do local, somada às máscaras que remetem à Ku Klux Klan utilizadas pelo elenco. Mas compreende-se que a apresentação é um vídeo-manifesto, com tons que sugerem um terrorismo naive naquelas figuras, enviado de 2023 para um público de teatro de 2019.
Uma das frases que inaugura Res Publica 2023 afirma que “é uma peça sobre amizade”. E talvez seja, como em fragmentos de um espelho torto, algo por aí. O espetáculo ganha em diversos momentos o caráter de um show de punk-rock. São gritos de revolta, entre metáforas que exigem do público grande elaboração para a construção de sentidos mais concretos e um discurso direto contundente.
Nesse sentido, no tom excessivo nas escolhas textuais e intenção das interpretações estrutura-se um teatro desagradável, que desloca a posição passiva do espectador. Apesar de dividida em três grandes quadros — quase que dentro de uma unidade de tempo aristotélica, ainda que talvez este seja um dos termos menos indicados para se referenciar ao espetáculo — há uma dinâmica constante que sobrepõe linguagens: o trabalho da Motosserra Perfumada deixa no ar a distinção que poderia ser feita entre o épico e o performativo, entre a antropofagia modernista e a anarquia do movimento punk.
É quase como se Res Publica 2023 levasse ao pé da letra a afirmação de Dedé Podre, figura controversa apresentada na obra como integrante importante do movimento punk cearense: algo como “tudo o que é podre é belo, e o que é belo é podre”. Nas personagens que habitam aquela república — e o bairro da República, e a República Federativa do Brasil — o que salta aos olhos são seus desejos torpes, mundanos.
No desenvolvimento da situação central emerge a busca por uma felicidade caótica, entre entorpecentes e a alegria pueril de festas miseráveis; como que entricheirando-se para poder viver suas utopias junkies. Ao mesmo tempo, a encenação de Pecorelli abre espaço para depoimentos, canções e comentários com o público que redimensionam aquele ambiente absolutamente marginalizado. Os degenerados, afinal, tem algo a dizer.
Os discursos sobrepõem problemáticas de opressões das mais variadas ordens, além da inserção de referências muitas vezes difíceis de apreender e contextualizar. Até mesmo no epílogo, quando há uma organização mais cartesiana do que se está discutindo, as relações apresentadas carregam consigo certa complexidade — e a imagem que encerra a obra em silêncio ressoa como um sonoro riff punk-rock que parece subverter tudo que o espectador pensara ter compreendido.
Res Publica 2023 parte desta organização caótica e anárquica do punk — que por vezes até soa um pouco dadá — para falar de nossos tempos de forma peculiar. A obra opera em tons de deboche e com uma elaborada precariedade em seus excessos; uma certa pretensão desleixada — e isso não é um apontamento pejorativo. Há também um intenso processo de dessacralização em vários níveis; referências bíblicas se pulverizam na obra, desde a incômoda oração que evoca o nome de um abortivo até uma possível última ceia que se desenha, além dos “12 vagabundos” que irão partilhar da carne (de um anti-Cristo?).
A coisa pública, nas várias camadas de significação, surge aqui como uma massa disforme e violenta. Ameaçadora e perigosa; mas também com certos encantos, ainda que miseráveis, na vida compartilhada. No inevitável fracasso da escolha pela não-ação, constrói-se uma trincheira inútil — mas haveria outra opção para aquelas figuras naquele contexto? Entre acontecimentos que não se elucidam e suas consequências terríveis, Res Publica 2023 grita sobre tempos de difícil apreensão.