teatro

à esquerda margem do rio e o infinito deserto

crítica de “Pornoteobrasil”, do Tablado de Arruar.

No vídeo aparentemente produzido a pedido do atual governo brasileiro e disseminado nas redes no dia 31 de março de 2019, o revisionismo histórico relacionado à ditadura militar ganha tons marcadamente religiosos. Enquanto as imagens ganham cores, o senhor que fala olhando diretamente para a câmera glorifica os militares, evoca o nome de Deus e quase parafraseia trechos de Gênesis.

(…) e o Brasil lembrou que possuía um exército nacional — e apelou a ele. Foi só ai que a escuridão, graças a Deus, foi passando, passando e fez-se a luz (trecho de vídeo distribuído por canal de comunicação do Planalto em 31/03/2019)

E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas. E disse Deus: Haja luz; e houve luz. (Gênesis 1:2–3)

O preâmbulo de nossa Constituição registra que sua promulgação se deu “sob a proteção de Deus”. O fato da religião imiscuir-se tanto em nossa política, ainda que o Estado brasileiro seja laico, passa longe de surpreender. Para além das questões que dizem respeito à legislações que buscam refletir a moralidade cristã — talvez, mais precisamente, a evangélica — também cabe refletir acerca da influência de imaginários teológicos em nossa organização ideológica-política.

A primeira cena de “Pornoteobrasil”, novo espetáculo do Tablado de Arruar, traz a aproximação de narrativas bíblicas à política nacional. Mais especificamente, relembra fatos ocorridos durante o ato ecumênico realizado em frente ao Sindicato dos Metalúrgicos do ABC no dia 07 de abril de 2018, em homenagem à ex-primeira-dama Marisa Letícia.

Pornoteobrasil
Alexandra Tavares e Gabriela Elias em “Pornoteobrasil” / foto: Jennifer Glass

O contexto do evento evidenciava seus inevitáveis contornos políticos. Mais tarde no mesmo dia, o ex-presidente Lula se entregaria à polícia. Após ter explorado a trajetória do Partido dos Trabalhadores (PT) e sua lida com o poder na Trilogia Abnegação, o Tablado de Arruar toma novamente eventos ligados ao partido como gatilho para um espetáculo. A dramaturgia de Alexandre Dal Farra — que também assina a direção ao lado de Clayton Mariano — destaca duas falas de líderes religiosos que teriam ocorrido no dia.

Na tranquila e articulada narração de Alexandra Tavares, primeiro um pastor é lembrado. Eloquente, seu pronunciamento fez vibrar a multidão de militantes fervorosos do PT e demais setores da esquerda. A fala de Tavares cita o paralelo traçado entre a trajetória de Jesus e a de Lula. As provações ao longo da vida, os ensinamentos; a traição, a injustiça, o sacrifício. O que ressalta como central, neste sentido, é a visão messiânica da existência de um “rei ideal”, o ungido de Deus, para liderar o povo.

Em seu último discurso público antes da prisão, Lula revisitou sua biografia. Entre ataques aos detratores e contundentes afirmações esperançosas, talvez a frase mais lembrada seja a de sua despersonalização — ou, ainda, de sua transubstanciação.

Não adianta eles acharem que vão fazer com que eu pare, eu não pararei porque eu não sou um ser humano, sou uma ideia, uma ideia misturada com a ideia de vocês. (…) Eu vou cumprir o mandado e vocês vão ter de se transformar, cada um de vocês, vocês não vão se chamar Chiquinho, Zezinho, Joãozinho, Albertinho… Todos vocês, daqui pra frente, vão virar Lula e vão andar por este país fazendo o que vocês têm que fazer e é todo dia! Todo dia! (discurso de Lula na frente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. 07/04/2018)

Para além do viés ideológico presente no discurso do ex-presidente, é possível conceber a aproximação ao discurso de despedida de Jesus (que se inicia em João 14). O voluntário sacrifício — ainda que, obviamente, Lula estivesse cumprindo um mandado de prisão — e uma comunhão com seus seguidores. A possibilidade da continuidade de sua existência enquanto presença de fé e atenção aos seus ensinamentos.

Não vos deixarei órfãos, eu voltarei a vós. Ainda por um pouco e depois o mundo não me verá mais, mas vós me vereis, porque eu vivo, e vós vivereis. Naquele dia vós conhecereis que eu estou em meu Pai e vós em mim e eu em vós. Aquele que tem os meus mandamentos e os guarda, esse é o que me ama; e aquele que me ama, será amado por meu Pai, e eu o amarei e me manifestarei a ele. (João 14:18–21)

Há, portanto, uma unidade com o divino; a singularidade de cada um que se comunga com Jesus, o Cristo. Dentro da perspectiva político-teológica que “Pornoteobrasil” parece suscitar, seria possível, nesse paralelo, conceber a formação de uma unidade por meio da compreensão do caráter messiânico da figura de Lula — e por ampliação, talvez, também do chamado lulopetismo.

Pornoteobrasil
“Pornoteobrasil” / foto: Jennifer Glass

No entanto, Tavares atenta para outra possibilidade — que dialoga mais com as cenas que se seguem no espetáculo. Seria a fala, durante o mesmo ato ecumênico, de um rabino que reflete acerca dos feitos do profeta Moisés.

Ora o homem Moisés era mui humilde, mais humilde do que todos os homens que havia sobre a face da terra (Números 12:3)

Não se levantou mais em Israel profeta algum como Moisés, com quem Jeová tratasse face a face, no tocante a todos os milagres, e prodígios, que Jeová o enviou a fazer na terra do Egito a Faraó, e a todos os seus servos, e a toda a sua terra; e no tocante a toda a mão poderosa e a todo o grande espanto, que operou Moisés aos olhos de todo o Israel. (Deuteronômio 34:10–12)

O profeta mais importante do Antigo Testamento conduziu por quarenta anos seu povo no deserto rumo à terra prometida — e apenas a vislumbrou; foi avisado por Deus de que, por suas transgressões, jamais as adentraria. Tavares aponta em sua narrativa uma relação muito mais complexa acerca da unidade neste caso. A harmonia da Trindade é aqui substituída por uma tríade mais conflituosa.

Deus, Moisés e o povo hebreu: o profeta é um mensageiro do divino, não parte consubstancial dele. E nesse sentido, há negociações, acordos, provações e provas; o povo tem suas demandas, e Deus seus mandos. Mas talvez o foco em “Pornoteobrasil” seja menos o divino e mais o deserto.

Pornoteobrasil
André Capuano e Alexandra Tavares em “Pornoteobrasil” / foto: Jennifer Glass

Na evocação de Tavares à ideia de Pasolini acerca da Unidade — em “Teorema”; um trecho do texto é o único que compõe o programa da obra — o Tablado de Arruar parece propor como centro da discussão um imaginário devastado da esquerda brasileira.

A Unidade do deserto estava sempre fixa diante dos olhos dos Hebreus, que no entanto, não pareciam enlouquecer. Ao contrário, se sentiam acolhidos por esta coisa Única que percorriam, conscientes (no fundo já felizes) de que já não poderiam nunca mais sair de suas distâncias infinitamente afastadas (trecho de “Teorema”, de Pier Paolo Pasolini, presente no programa de “Pornoteobrasil”)

E a permanência dos chamados “signos da repetição” ao longo desta trajetória fazia notar aos hebreus, segundo Pasolini, de que a paisagem “nascia de si mesma, continuava consigo mesma e acabava em si mesma”. Confrontada às persistentes transformações da vida, ela seguia lá. Já na última cena do espetáculo, onde Gabriela Elias se junta à Tavares e dá sequência às colocações e reflexões do início, uma afirma a outra que as coisas seguem; independente do que fizermos — e do nosso entendimento. Elas seguem.

À beira do rio Jordão, na margem oposta à terra prometida, os hebreus perderam seu profeta. Tavares, em sua cena inicial, não fala da nova liderança, Josué, tampouco da travessia para as terras de Canaã. Ela reflete sobre o povo: superados os quarenta anos de deserto, apenas o rio os separando de seu destino final. E, naquele momento, sem alguém que os conduzisse, perdidos.

E quero dizer a vocês, Guilherme [Boulos] e Manuela [d’Ávila], a vocês dois, que para mim é motivo de orgulho pertencer a uma geração, que está no final dela, ver nascer dois jovens disputando o direito de ser presidente da República neste país. (discurso de Lula na frente do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC. 07/04/2018)

Mesmo com essa menção aos então candidatos do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), a complexa relação entre ideologia, mensageiro e povo dificilmente se deu resolvida. Manuela d’Ávila acabou tornando-se vice da chapa do PT; Boulos, articulado e contundente nos debates, passou longe de uma votação expressiva. “Pornoteobrasil” se localiza neste vácuo insoluto, entre segmentos do povo atônitos e outros em fervorosa devoção ao cenário que se desenha.

Na encenação, a cenografia de Simone Mina apresenta aos espectadores uma imagem como que de ruínas contemporâneas. Diversos recipientes brancos se empilham no fundo do palco; alguns já estão tombados pelo espaço. Duas escadas estão dispostas horizontalmente, como que limitando o espaço de um jeito inusitado. Uma grande tábua de madeira está apoiada de maneira torta sobre os recipientes. E uma manta térmica parece sugerir um cadáver — ausente.

Depois da narrativa teológico-política de Tavares, os demais intérpretes do elenco entram em cena. De perucas e com figurinos — também de Mina — um tanto esdrúxulos, reorganizam alguns recipientes para sentar sobre eles. Além de Tavares e Elias, André Capuano, Ligia Oliveira e Vitor Vieira completam o preciso elenco.

Pornoteobrasil
André Capuano e Alexandra Tavares em “Pornoteobrasil” / foto: Jennifer Glass

Na cena que se sucede, dispositivos recorrentes na dramaturgia de Dal Farra são vistos. O que se constrói é uma poética do desconcerto. As personagens buscam retomar episódios das próprias vidas — sem muito sucesso. Entre situações de uma aparente banalidade, evidencia-se o caráter crítico a certos procedimentos da esquerda. Surgem metáforas interessantes no meio desses fragmentos de memória. Porém, o raciocínio daquelas figuras parece sempre estar patinando pela superfície; os questionamentos feitos por seus pares nunca são entendidos de fato.

Então, na terceira cena, a incomunicabilidade que já era tangenciada na anterior torna-se vociferada. Impossível não pensar nas redes sociais e em nossos discursos apaixonados reproduzidos aos gritos — que ninguém ouve. Ao redor de uma mesa, apenas uma das figuras parece tentar entender tudo aquilo que está acontecendo ao seu redor. Evidentemente fracassa.

“Não tem mais isso de ‘vou pensar’. É falar e fazer”, diz Elias à Tavares na cena final. Na retomada ao contexto da primeira cena se revela ainda mais o discurso de “Pornoteobrasil”; mas mesmo assim o que resulta é uma desconcertante incógnita na fruição. É no último momento do espetáculo que se compreende, minimamente, o que está acontecendo ali — ainda que tão pouco localizado, é óbvio que de algum modo só se pode estar falando do Brasil de hoje.

Na encenação de Dal Farra e Mariano, frente à explicitude do que se vê à nossa volta, o enfrentamento estético se dá mais na dúvida do que em certezas. Estando, sem dúvidas, à margem esquerda do rio, a terra prometida parece infinitamente mais distante do que todo o deserto superado.

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“Pornoteobrasil” / foto: Jennifer Glass