por que teatro?
sobre as perspectivas do teatro em 2021
Finitude. Para além de ser uma característica intrínseca ao fenômeno teatral, caracterizado sobretudo por sua efemeridade, a morte e o fim são também alguns de seus temas centrais. Em um trabalho recente da cia. Hiato – 02 ficções, de 2014 – a dramaturgia de Leonardo Moreira decretava que “toda história é a história de alguém que vai morrer“. No trabalho Cada vez que alguém diz isso não é teatro uma estrela se apaga, da companhia mexicana Lagartijas Tiradas al Sol, a narração nos lembra que “o teatro nos recorda o mais simples: uma vida é uma vida“. Uma vida é uma vida.
Há muito é assim. Antígona reivindicava velar seu irmão. Hamlet começa com um fantasma e termina com cadáveres. “O resto é silêncio“. Inúmeros exemplos se espalham pela história do teatro, de tantas eras e tantos lugares. Purgamos nossas dores em plateias mundo afora. Elaboramos nossa dura realidade a partir de atravessamentos da ficção. Nos apoiamos nela pelo prazer, pela emoção, pelo riso e pela beleza, sem dúvidas. Mas, talvez precisamente por ser uma arte tão viva, é impossível não contemplar em si também a morte e seu imprescindível luto.
Então, 2020. Como escrevi na retrospectiva, chamar este ano de “um ano perdido é desrespeitar as verdadeiras perdas. Este ano existiu. Caminhamos por ele. Seguimos e seguiremos em sua elaboração, em seu imensurável luto e em suas infindáveis lutas. É necessário lembrar dele“. Muito aconteceu e segue acontecendo. Este texto tenta organizar de algum modo as perspectivas para o 2021 que já começa doloroso e inacreditável.
Teatros em São Paulo voltaram a receber espetáculos e públicos ainda no ano passado. Protocolo Volpone pretendia tatear as possibilidades de se fazer teatro presencialmente seguindo todas as recomendações sanitárias. Particularmente, foi uma experiência triste. Aqui não coloco em xeque questões de ordem técnica, escolhas da encenação, trabalhos de interpretação. Mas penso em torno desta realização em si: cabines individuais, espaço aberto, uso de máscaras por todo o elenco e higienização constante dos adereços cênicos. Sob uma perspectiva pragmática, o risco de contágio era mesmo baixo. Ainda, a obra da Bendita Trupe buscava dialogar com nossos tempos.
É lugar-comum afirmar que o teatro é a arte do presente, mas o é. Assim como estranhamos ver filmes que se passam na atualidade e as pessoas se aglomeram e não usam máscaras, me parece muito esquisito ir à uma peça de teatro que não reflete sobre a realidade que o circunda. Não se trata apenas de fornecer álcool gel, exigir o uso de máscaras e deixar lugares vazios no público.
Todo artista e coletivo é absolutamente livre para decidir o que fazer. Isso não o isenta de ser questionado – ou até mesmo responsabilizado – por suas escolhas e ações. Por que fazer teatro agora? (Escrevo sabendo que seria possível simplesmente inverter este questionamento: por que não fazer?). Durante 2020, refleti em torno do fazer teatral possível dentro do contexto online – principalmente no texto o que, por que, para quem?, publicado em julho.
Não por acaso, as obras que mais me impactaram no período foram as que, seja na forma, no conteúdo ou em ambos, olharam para o triste e terrível entorno. Suas criações, enquanto respostas, foram radicalmente diversas. Os Satyros versaram sobre A arte de encarar o medo, construindo na tela do Zoom a distopia da realidade, enquanto o Magiluth suspendeu o tempo para contar uma história de amor em Tudo que coube em uma VHS, compreendendo o dinamismo das redes como estrutura de encenação.
Cito algumas como exemplos, mas foram muitos os artistas e coletivos que se desdobraram dentro dos possíveis, dos desejos e das limitações de 2020. Existem motivações concretas que não devem ser ignoradas – a necessidade de trabalhar – e uma miríade de outras. Assim como agora, onde quem decide colocar um espetáculo em cartaz deve ter suas razões.
O como se resolve por medidas práticas e protocolos sanitários. E o que? E o porquê? O que significa ir ao teatro enquanto Manaus está sem oxigênio nos hospitais? O que significa fazer teatro enquanto entramos de cabeça em uma segunda onda de contágio? O que pode o teatro em meio a tudo isso? (Gosto de lembrar sempre da desimportância do teatro. Ele não pode nada e, talvez por isso, pode tudo.)
Trabalhadoras e trabalhadores da cultura viram seu mercado de trabalho simplesmente desaparecer logo no início da pandemia. Não há, para a maioria esmagadora das funções de nossa área, a possibilidade de home office. O confinamento tornou-se gatilho para se pensar novas formas de fazer teatro; de criar obras de base teatral, de construir novos meios de se encontrar com o público. Mais do que a arte do encontro, o teatro é por excelência uma experiência de convívio na esfera pública. Na ágora. Na diversidade, na sociedade. Também foi difícil para o público ver teatro do conforto de seu sofá, de sua cama, enquanto lavava a louça…
Mas e agora? Como é se encontrar no espaço público? Como se articula coletividade enquanto o objetivo é preservar a vida e a saúde acima de tudo? Em meados do ano passado, ganhou força um debate em torno de manifestações de rua – uma discussão que sempre ressurge, visto que nosso país já deveria estar em chamas. Evidentemente, uma aglomeração que é feita para exigir justiça, respeito ou democracia é muito diferente de se encontrar com pessoas em um restaurante, bar ou teatro.
Este texto não é um manifesto anti-teatral, tampouco uma exigência pelo surgimento de um teatro pandêmico ou uma estética da pandemia. Olhar para o presente não significa falar do presente. Significa não ignorá-lo. É uma questão estética, sim, também. Mas é fundamentalmente ética. Este texto é uma pergunta. Ou são muitas, algumas que faço a mim mesmo. O que cabe, hoje, aos artistas da cena? Como o teatro atravessa estes tempos que nos atravessam? Por que fazer teatro agora? Por que ir ao teatro agora? Que teatro se faz neste instante da história?