sobre a impotente vertigem e a potência da alteridade (ou do desejo de outrar-se)
crítica de “OUTROS”, do Grupo Galpão
foto de Clarissa Lambert
O longevo e fundamental Grupo Galpão, sempre transitando entre a própria tradição e uma constante reinvenção, volta a se encontrar com o diretor Márcio Abreu depois de “NÓS” (2016) e se mantém inquieto, buscando em si e ao seu redor compreender o contemporâneo. “OUTROS” aprofunda questões suscitadas neste processo, configurando com ele, conforme afirma o programa, um díptico cênico.
Se havia em “NÓS” um enquadramento fabular que estruturava – mais ou menos – a narrativa, o que se vê no decantamento da pesquisa de “OUTROS” são quadros em um complexo jogo entre performatividade e códigos de representação de alguma ordem; o espaço em branco desenha-se como sala de ensaios – o que é verificado na reverberação de elementos processuais trazidos à cena – e como lugares muitos, referenciados ou não.
Há uma dualidade contraditória assumida na proposta cênica de maneira radical, por assim dizer. Tendo o outro como matéria, a alteridade como objetivo, o que se verifica é a impossibilidade da fuga de si – e a assunção de uma espécie de fracasso na revelação das tentativas de fazê-lo.
Desse modo, a obra traz consigo as décadas de trajetória do Grupo Galpão, e simultaneamente busca produzir um distanciamento de quem são aquelas pessoas. É inevitável pensar em outro trabalho recente de Abreu: questões presentes em “PRETO”, da companhia brasileira de teatro, parecem tangenciar as apresentadas em “OUTROS”. Ambas trazem consigo inquietações acerca da produção de discursos e de sua corporeificação.
No entanto, enquanto em “PRETO” há um jogo intenso no que se refere ao locus social daquele corpo que enuncia (ou vivifica) o discurso, o que salta como central em “OUTROS” é a construção do discurso em si; o sentido das próprias palavras, com quem se fala, sobre quem se fala, do que se fala. Os procedimentos cênicos adotados buscam criar deslocamentos para a recepção; armadilhas por vezes desconfortáveis para a plateia.
A banda, tocando desde a entrada do público, constrói uma atmosfera de integração por algum tempo. As letras não são de todo compreendidas muito além dos contundentes e repetitivos refrãos, mas no que se absorve vem algo de entalado na garganta, que só poderia ser cantado; como se já houvesse ali uma busca de formalizar um discurso dentro de alguma linguagem que o comporte. Aos poucos, a insistência da música já começa a parecer demais.
E essa será uma constante ao longo do espetáculo: tentativas que se prolongam até se tornarem desagradáveis e então seguem se repetindo até que, depois de esvaziadas, se ressignificam. No cenário todo branco de Marcelo Alvarenga (Play Arquitetura), o que se vê é um abismo, um espaço vazio impossível de se preencher, assim como a distância entre eu, o outro; nós.
São diálogos entrecortados sobre histórias não-nossas que parecem pouco se escutar – além de comentários que por vezes parecem soar como desabafos processuais acerca de programas performativos (como a questão de não falar em “eu” – “‘eu’ não pode, mas ‘nós’ pode?”). A repetição gera a fricção entre as várias vozes que buscam se colocar, criando curiosas – e precisas – leituras, que não deixam de ser complexas nem mesmo quando bem organizadas.
Na insistência da negativa como possibilidade de existência – uma vertiginosa repetição de “nãos” – uma janela catártica insinua abrir-se para o público; para além da arrebatadora lida com a subjetividade das relações proposta em “OUTROS”, é interessante vislumbrar também o horizonte político capaz de emergir na obra.
Também na potência das palavras, é desesperador acompanhar o monólogo de Antonio Edson. O discurso “engasgado” traz uma dolorosa beleza e pode ser vista como uma síntese da obra no tangente ao texto. Por outro lado, também são muitos os corpos que buscam dizer. Nas cenas de ensaio de coreografias – e bailes! – o formalismo contém em si ironia destas tentativas de organizar discursos.
Em outro quadro, no afeto entre os corpos, uma massa erótica que se movimenta em diagonal abandonando pelo palco suas “pegadas” – os figurinos que formam uma trilha – o que se vê é a síntese deste discurso enquanto corpo, também. Não que este se organize de maneira simples. É sobre alteridade? É sobre o Grupo Galpão? É sobre nós? Sobre o outro? As fronteiras se borram na certeza de que, ao mesmo tempo que é impossível sair completamente de si, é fundamental tentar fazê-lo.