teatro

tempo, semente que germina travessia

crítica de “Os minutos que se vão com o tempo”, da Zózima Trupe.

No meio de uma tarde chuvosa, o 407F-10 — Metrô Belém — Terminal São Mateus está preso no trânsito. O ônibus está cheio. Semblantes cansados, mas com olhares atentos. Mais um ponto, mais embarques. Uma ação diferente chama a atenção daqueles que entram. Canções e histórias sendo contadas por uma trupe. A placa levantada por um ator avisa: “Atenção: você está no teatro”.

Foram nove anos pesquisando o ônibus como espaço cênico — e as diversas possibilidades decorrentes disso — até a Zózima Trupe aventurar-se a realizar um espetáculo dentro de um ônibus de linha. Em 2016, contemplados pela 24a edição da Lei de Fomento ao Teatro da cidade de São Paulo, desenvolvem a pesquisa que chega ao espetáculo “Os minutos que se vão com o tempo”.

Além do teatro feito no ônibus — seja ele alugado, seja o próprio da companhia — a Zózima realiza ocupação artística em pleno Terminal Urbano Parque Dom Pedro II por quase uma década. Projetos como “Toda terça tem trabalho, tem também teatro!” estabeleceram um diálogo prolífico do grupo não apenas com o entorno, mas com esse espaço de passagem, de travessia — e, por que não, de encontro.

Dentro do projeto Teatro Fora da Caixa, do Sesc Belenzinho, a trupe volta à apresentar “Os minutos que se vão com o tempo”, agora em outra linha de ônibus. É interessante notar que o diálogo da obra não é com uma região específica da cidade, ou com um percurso definido; é com as viagens. Sejam as grandiosas — como a “Odisseia”, uma das fontes de pesquisa do trabalho — ou as travessias cotidianas. E, fundamentalmente, com o tempo.

Seja o tempo do retorno de Odisseu à Ítaca, o tempo do caminhar ou o tempo gasto dentro de um ônibus no dia-a-dia. As trajetórias das personagens lidam com imaginários de espera e de busca; tal qual tantos passageiros guardam histórias assim e anseios semelhantes. O que se espera, por quem se espera, por que se espera. O que se busca, quem se busca, por que se busca.

Os minutos que se vão com o tempo
Anderson Maurício em “Os minutos que se vão com o tempo” / foto: Danilo Dantas

Os anos de residência artística e de pesquisa de como fazer teatro dentro de um ônibus deram estofo para a Zózima Trupe efetivamente ir para o ônibus de linha e transformar um lugar de passagem e passividade em um lugar de encontro e afeto. A encenação de Anderson Maurício — que também atua — começa com uma cena ainda no terminal.

É na chegança de um sujeito (Junior Docini) um pouco estranho — bigode loiro, passos tortos, os olhos escondidos por óculos escuros — que as atenções se voltam para este acontecimento cênico. Pessoas param para olhar, curiosas. Lentamente chega Maurício, registrando no chão suas pegadas, marcando seus passos do caminho seguido, um mensageiro que lhe entrega uma carta. Aos poucos, Cleide Amorim, Maria de Alencar, Priscila Reis, Tatiana Nunes Muniz e Tatiane Lustoza — ou seja, o elenco completo — formam uma roda.

Aí se nota uma bonita evocação do chamado teatro popular. A trupe canta e conta um início de história para esse começo de viagem. A dramaturgia assinada por Claudia Barral em processo colaborativo revela-se desde este momento uma prosa poética de muita potência imagética. Ao mesmo tempo refinada e acessível, formula pérolas preciosas — muitas em forma de pergunta.

São como iscas lançadas ao público a todo momento. No pequeno trajeto até o embarque no 407F-10, atores e atrizes se aproximam dos espectadores — “se o seu coração pudesse viajar, qual seria o seu destino?”. A Zózima Trupe transforma o ônibus urbano em um espaço íntimo de reflexão e troca.

Neste sentido, as interpretações do elenco se destacam pela delicadeza no falar com o outro e nos olhares apaixonados e apaixonantes. Estão todas e todos ali, inteiros e interessados no que esse outro, público ciente da apresentação ou espontâneo, tem para contar.

Zózima Trupe
Tatiana Nunes em “Os minutos que se vão com o tempo” / foto: Danilo Dantas

A dramaturgia de Barral é inteligente ao alinhavar as trajetórias das personagens sem deixar de lado o contexto da apresentação — pessoas vão embarcar e desembarcar ao longo do tempo. O texto lança iscas poético-reflexivas com a capacidade de reverberarem mesmo naquelas e naqueles que subiram no ônibus no meio da narrativa mais ampla.

Além disso, a escolha da figura do mensageiro e de suas cartas como disparador dos acontecimentos que dão andamento à peça é um ótimo recurso dramatúrgico.

Os minutos que se vão com o tempo
Junior Docini em “Os minutos que se vão com o tempo” / foto: Danilo Dantas

Também, estando a trupe mais do que ciente do tempo e do percurso — tanto concreto quanto fabular — há uma interessante calma no estabelecimento daquelas personagens. As relações entre elas se constroem no caminho; são todas e todos simultaneamente narradores da própria história e comentadores das demais.

Assim, são também como passageiros do ônibus, com os quais, em constante relação, conversam e retransmitem suas histórias aos demais. Nos imaginários de busca e espera, revelam-se questões de fácil identificação — ainda que singulares. Também, nas entrelinhas, de forma sutil, a trupe insere suas críticas; por vezes por meio do humor, por outras embutida em uma reflexão que não abandona sua poesia.

“Se os minutos fossem sementes, quantas florestas teríamos perdido?”. O paulistano médio passa horas de cada um de seus dias no transporte público. No olhar daqueles embarcando neste ônibus, estranhamento e cansaço são visíveis. Talvez até o pensamento de que, por conta do teatro, hoje há menos espaço. Muitos provavelmente não tem o hábito de ir assistir espetáculos teatrais — quem sabe quantos nunca o fizeram?

Aos poucos, a beleza das músicas executadas ao vivo (Luiz Gayotto assina a direção musical), o humor nas histórias e o já citado brilho no olhar e delicadeza dos intérpretes cativam até o mais exausto dos trabalhadores. A Zózima Trupe e seus minutos que se vão com o tempo, ao romper com o horizonte de expectativas do cotidiano, revelam-se uma pulsão de vida que injeta poesia no coração dos fins de tarde de concreto.

Há um cuidado delicado nos figurinos, adereços e ações. Na direção de arte de Lucas Lopes e nos objetos cênicos de Thamata Barbosa, detalhes saltam aos olhos. Os — importantes! — microfones de cada ator e atriz estão encapados, harmonizando-os com os figurinos e de certo modo disfarçando o aparato técnico. Mais do que isso: o pequeno amplificador carregado por cada ator se localiza dentro de uma pequena bolsa vermelha, em formato de coração.

As vozes que contam histórias e cantam canções saem do coração. Como lágrimas que guardam o gosto do mar e nascimentos de todo um céu, o que emerge é a constante busca pelo tempo de se existir em plenitude. E as vezes, basta abrir os olhos para um tão-evitado desconhecido; em outras, é preciso dar o sinal para desembarcar — sabendo que muito do que fica é travessia que germina.

Zózima Trupe
Zózima Trupe em “Os minutos que se vão com o tempo” / foto: Christiane Forcinito