dos tempos e ventos que nos atravessam
reflexão crítica de amilton de azevedo sobre “Orlando”, de Julie Beauvais e Horace Lundd, apresentada na 7ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MiTsp).
(fotografia de um dos vídeos que compõem “Orlando” / direção de arte, fotografia e vídeos: Horace Lundd)
Orlando começa e termina com convites. A instalação performativa de Julie Beauvais e Horace Lundd parte do romance homônimo de Virginia Woolf, publicado em 1928, para refletir sobre o que a artista chama de um paradigma pós-binário.
A estrutura, de Sibylle Kössler e Wynd van der Woude, é um heptágono vazado de madeira com sete grandes telas. O público pode circular livremente pelo espaço, incluindo o interior da composição. No centro está Bartira, a artista convidada para as apresentações da 7ª MiTsp que, a partir de um protocolo do compositor Christophe Fellay, constrói ao vivo a atmosfera sonora da obra.
A ideia de convidar artistas locais para a colaboração musical dialoga com a relação das pessoas presentes nos vídeos — os Orlandos — com as paisagens que os circundam. Ainda, não fosse anunciado por Beauvais, dificilmente se pensaria que Bartira não participou da criação, considerando a organicidade com que suas experimentações eletrônicas povoam o ambiente. Entre música ambient e harsh noises, por momentos até parece que a artista sintetiza a natureza.
Segundo Beauvais, a escolha da cenografia e o número original de Orlandos filmados (a obra é permeável e pessoas seguem sendo gravadas) se dá em relação à estrutura do romance de Woolf. Nele, a personagem central passa por sete grandes temas em sua longeva existência — Orlando vive por 400 anos, sendo ora homem, ora mulher.
Tal dado pode ser considerado parte, mas não o todo, da reflexão acerca do paradigma pós-binário proposto por Orlando. Nos vídeos, Michael John Harper, Orakle Ngoy, Winsome Brown, Carolyn Cowan, Nyima, Diego Bagagal, August Schaltenbrand, Natalia Chami, Valentina Bordenave e Frans W.M. Franssens são registrados pela fotografia de Lundd (que assina a direção de arte e os vídeos) em paisagens ao redor do mundo.
Sua gestualidade — ou, melhor dizendo, sua qualidade de presença — nasce de um trabalho desenvolvido por Beauvais (que assina direção artística e coreografia) junto à elas/eles/elus. As gravações foram feitas na aurora, “essa hora andrógina”, como afirmou Beauvais após a sessão das 16h de sábado, 07 de março. É parte integrante da instalação performativa um bate-papo onde a diretora responde inquietações suscitadas pela experiência da obra.
Ali, acaba por explicitar certos posicionamentos acerca do discurso que se apresenta formalmente em sua ópera-instalação. Causa certa estranheza, considerando o lugar contemplativo e vivencial de sua proposta, mas se justifica fundamentalmente pelo vídeo exibido no final, onde cada Orlando envia uma mensagem para os/as/es demais.
Orlando se inicia com um convite. Passeie por este espaço-tempo que se abre em tantos. Permita-se um estado contemplativo; exista junto à instalação, seja permeável assim como a estrutura é. Nos vídeos, Orlandos sutilmente movem-se de forma infinita.
Os imensos céus estão em todas as gravações e há sempre o horizonte. As paisagens são mais ou menos inóspitas. Pássaros voam, ondas quebram ao longe, o vento força o corpo a fixar-se, mas não há tensão; as mãos, em movimento, emanam a presença humana em meio à vastidão da natureza. Na transição dos vídeos, um novo corpo passa a habitar uma mesma tela, de outra idade, raça, gênero. Ainda que evidentemente com suas marcas da diferença, passa a importar pouco como se lê aqueles corpos.
É como se todos os tempos (n)os atravessassem. O paradigma pós-binário proposto por Beauvais e Lundd passa por gênero, mas não se detém aí. Não se trata de um debate sobre performar identidades, mas de transcendê-las. Orlando termina com um convite: compreender a existência não como categorias estanques, mas como fluidez.