teatro

a devastação do êxtase

reflexão crítica de amilton de azevedo sobre “Multidão (Crowd)”, de Gisèle Vienne, obra que abriu a 7ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MiTsp)
(foto: Silvia Machado/MiTsp 2020)

Uma espécie de terra preta cobre o palco. A luz, pálida, ilumina um cenário de desolação, entre um vazio distópico e um fim-de-festa — considerando as latas e outros lixos espalhados pelo chão. Começa a pulsante trilha sonora de techno (e outros gêneros da dance music).

Lentamente, vê-se uma figura encapuzada ganhando a cena. E toda uma multidão seguindo atrás. Mesmo na quase suspensão dos movimentos, há naqueles corpos uma pulsão de vida tremenda; uma intencionalidade que os carrega na direção de algo fundamental. Sim, tudo indica que é uma festa; não fossem os figurinos e as latas nas mãos, porém, nada impediria que fosse Meca, o Santo Graal ou qualquer ponto de peregrinação religiosa.

Em Multidão (Crowd), de Gisèle Vienne, compreende-se a temporalidade outra da celebração. A festa aqui não é apenas a balada dos jovens, regada a bebidas e alteradores de consciência. É a suspensão da vida cotidiana: nas composições presentes no espetáculo — que tem como um dos elementos constitutivos uma constante apresentação de tableaux vivants — por vezes há a possibilidade dúbia de leitura: o êxtase ali é profano ou religioso? É a carne que vibra ou um espírito que louva?

Os procedimentos e dispositivos de Multidão não demoram a ser compreendidos pelo espectador. O que se sucede é um esgotamento devastador desses corpos em movimento. Não necessariamente físico — ainda que o trabalho coreográfico seja de fato impressionante pela exigência e precisão — mas transcendental. Nas relações que se estabelecem entre os performers, é possível ler afetuosidade, tesão, ódio e violência; por vezes, frente à radicalidade formal do espetáculo, poderia haver nestas sugestões uma maior intensidade.

As variações da partitura desta multidão geram efeitos estéticos de ordens distintas. Logo no início, a câmera lenta estabelece a atmosfera da encenação e convenciona um pacto com o espectador. Também cria nele um horizonte de expectativas que, mesmo compreendida a dinâmica, segue sendo continuamente obliterado pelo desenvolvimento da narrativa visual — até o momento onde a obra simultaneamente parece encontrar sucessivos fins e indica que pode não acabar nunca.

Pois há um processo contínuo vinculado a esse esgotamento do êxtase. Após a súbita quebra e seu ensurdecedor silêncio, o procedimento formal passa a ser um esgarçamento desses corpos devastados. Parece ser só aí que Multidão se confronta com o risco de sua radical pesquisa de linguagem — até então, a tessitura de seu discurso formal permanecia intacta. Mesmo assim, o risco parece deslocar-se para fora do palco; a recepção, exigida desde o início, está tão cansada quanto os performers espalhados pelo chão.

A obra seria mais palatável se mais sintética. Seu longo esvaziamento após o ápice, porém, contorna a encenação como um todo. Da devastação inicial, resta uma vastidão a ser preenchida de sentidos.