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o que se vive antes de um algo começar

crítica a partir de O vão entre o trem e a plataforma, da Companhia dos Solilóquios. este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Não, não / São Paulo é outra coisa / Não é exatamente amor / É identificação absoluta / Sou eu / Eu não me amo / Mas me persigo / Bonita palavra, perseguir / Eu persigo São Paulo. (Itamar Assumpção – Persigo São Paulo)

Alguns minutos diante do prédio do Sesc 24 de Maio oferecem a um olhar atento universos radicalmente distintos. Não é difícil perceber, por tudo que acontece em um curto espaço de tempo na região central da cidade, que São Paulo é outra coisa. Seriam quase infinitos os adjetivos para se falar de um território tão desigual e plural em talvez todas as acepções dessas palavras. Em certo momento de O vão entre o trem e a plataforma, da Companhia dos Solilóquios, a dramaturgia de Bruna Vilaça sugere que São Paulo são suas pessoas (aqui, o corretor acaba de recomendar a palavra “personagens” no lugar de “pessoas”; também é um modo de ver – a peça, a cidade).

A Companhia dos Solilóquios, que assina coletivamente concepção e encenação, defende um teatro feito por jovens e para jovens e o presente trabalho encerra a primeira trilogia do grupo. A distinção entre os teatros adultos e os teatros para as infâncias é melhor delineada do que esse momento de contornos borrados: quando uma criança se torna um jovem e quando um jovem se torna adulto? O vão entre o trem e a plataforma faz de algumas imagens disparadores de reflexões e compartilhamentos em torno deste quase-não-espaço. A começar pela própria ideia que nomeia o espetáculo – o que pode levar a pensar em torno desses três elementos: se o jovem seria o vão, o trem e a plataforma seriam a idade adulta e a infância ou vice-versa?

Para colocar o espetáculo em movimento, o texto de Vilaça joga com essa espécie de hiato, ao mesmo tempo em que suscita nostalgias e devires. Espécie de devaneio organizado e ensaístico em seus fluxos, a estrutura do texto e suas brincadeiras com as linguagens irmanam-se à sua temática. Antes de chegar às linhas dos metrôs e trens, uma linha do tempo de linhas nos tempos em mitologias e saberes, da Grécia ao Japão, das almas gêmeas ao destino e a morte. Da Grécia, também, especificamente de suas tragédias, O vão entre o trem e a plataforma apresenta sua constituição e reiteração enquanto prólogo – outra das imagens que acionam as engrenagens do trabalho. Ainda que estes sejam o que se diz antes de um algo começar, não deixam de ser importantes para o início que virá. Constroem uma espécie de chão de onde heróis trágicos levantarão voos e para onde cairão.

Para dar a ver esse tanto que se vive antes que algo de uma vida comece, a Companhia dos Solilóquios faz das linhas e estações do transporte público sobre trilhos inspiração para um movimento cotidiano-poético; composições cênicas e gestos coreográficos transitam entre esses dois polos. O desenho de luz de Andreza Dias e Weslley Nascimento recorta o vão e o espaço diminuto de vagões, mas também colore a cena e cria atmosferas em neon, dialogando com os figurinos de Vilaça e Wallace Fiel e o visagismo (não creditado na ficha técnica). As cores e seus brilhos podem, inclusive, remeter à estética e à fotografia de séries jovens, como Euphoria ou Boca a Boca e seus momentos de festas e angústias. Na trilha sonora de Aghata, samples distantes de toques escutados na linha amarela do metrô compõem sutilmente o ambiente e trechos instrumentais confluem com encenação e texto.

A dramaturgia descreve ações e situações enquanto também parece buscar pérolas líricas e lançar mão de metáforas que brincam entre graça, beleza e dor, com trajetórias, itinerários, adiantamentos, adiamentos, atrasos e urgências deste momento da vida. O texto de O vão entre o trem e a plataforma, aliás, parece ser possível de lido como conto ou crônica, no sentido de sua forma eminentemente narrativa possibilitar a visualização daquilo que se diz, do que está escrito, também pelo jogo proposto pela cena, onde narração e ação por vezes se dissociam, por vezes habitam o mesmo corpo. Na fragmentação do “eu” que conta a história, recortes de gênero e raça se borram no que indica uma busca do coletivo por um diálogo intersubjetivo em torno da constituição da juventude. Há momentos onde uma relação “eu-Outro” surge como possibilidade cênica e então quem diz e quem escuta se torna incerto – esse contorno é ora borrado, ora evidenciado pelas composições do elenco (Bruna Vilaça, Daniela Carinhanha, Felipe Herculano, Santiago Acosta Cis e Weslley Nascimento).

Se quase não há diálogos, o que emerge é a conversa que cada um tem consigo mesmo. Enquanto espera que as portas do vagão se abram, enquanto embarca em memórias, enquanto anseia pela estação de chegada. Em meio ao tanto que pode caber nestes mapas traçados de linhas, seus significados, amores urbanos, amores baldeações, o primeiro amor, o próximo amor, uma cidade, o passado, o agora. Diante de um algo a começar, ingenuidades, dúvidas e certezas convivem em suas contradições neste inescapável prólogo, onde tanto se vive e se descobre, vivendo, sobre o viver.

logo do projeto arquipélago

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ficha técnica
O vão entre o trem e a plataforma

Dramaturgia: Bruna Vilaça
Concepção e Encenação: Companhia dos Solilóquios
Elenco: Bruna Vilaça, Daniela Carinhanha, Felipe Herculano, Santiago Acosta Cis e Weslley Nascimento
Figurinos: Bruna Vilaça e Wallace Fiel
Cenotécnico: Maurício Batista
Trilha Sonora: Aghata
Desenho de Luz: Andreza Dias e Weslley Nascimento
Ilustração e Cartaz: Breno Lisboa
Foto Still: Rayssa Zago
Fotos de Estreia: Rafael Sá
Assessoria de Imprensa: Luciana Gandelini
Assistente de Produção: Julia Iwanaga
Produção Executiva: Weslley Nascimento
Supervisão de Cena: Julia Correa e Mayara Constantino
Idealização: Companhia dos Solilóquios

serviço

Sinopse: Após um atraso que a leva a perder o trem, uma jovem persona, consumida pelo tempo da espera, dá início a um ensaio de pensamentos sobre o trem perdido, as estações que frequentou, as baldeações que já fez na vida e nas pessoas. Mergulhando no vazio entre o trem e a plataforma, a personagem, representada por cinco intérpretes, visita o passado, vislumbra o futuro e percorre pelas linhas e multiverso encontrando diferentes versões de si mesma. Duração: 60 minutos.
Classificação: 12 anos
Onde: Sesc 24 de Maio - 4º Andar - Endereço: Rua 24 de Maio, 109 - República, São Paulo - SP
Quando: 18, 19, 20, 25, 26 e 27 de abril de 2024 (de quinta-feira a sábado) - Horário: 18h
Ingressos: R$30,00 (inteira) / R$15,00 (meia) / R$9,00 (credencial SESC)
Informações: https://www.sescsp.org.br/unidades/24-de-maio/