teatro

navegando rio acima (para desaguar, conhecer as nascentes)

crítica de “O Santo Dialético”, do Teatro do Incêndio.

O Brasil é um universo. Difícil falar em uma identidade nacional que abarque as dimensões continentais de nosso país e a pluralidade de nosso povo. Neste sentido, falar em cultura brasileira é dar conta de uma complexa gama de referências, sobreposições e apagamentos. Talvez um ponto em comum entre nossas celebrações culturais seja a relação destas com a fé. Aliás, com as fés. No plural.

Uma reflexão poética sobre as relações entre ancestralidade, religiosidade e identidade é proposta em “O Santo Dialético”, obra de 2016 do Teatro do Incêndio — que completava 20 anos de atividade na época. Na dramaturgia de Marcelo Marcus Fonseca, que também dirige a obra, o público é conduzido por seis histórias de pessoas comuns.

As narrativas, inicialmente paralelas, trazem em sua maioria questionamentos sobre a fé. Única exceção é o personagem representado por Fonseca; na situação-limite apresentada, um publicitário não se reconhece no próprio corpo enquanto lida com a doença terminal da esposa. Ainda que distante da temática em si, também em jogo está a procura pela própria identidade. E o desafio de aceitá-la.

Nas demais personagens, os conflitos estão diretamente vinculados a diferentes crenças e cosmovisões. A estrutura do espetáculo traz dois atos muito bem delineados; e a linguagem dos quadros se alterna entre situações dramáticas, narrações e a presença do coro. A grande potência da obra está na narratividade e na construção de imagens por meio da composição cênica; as relações dramáticas parecem servir de base para essas possibilidades — e pela necessidade de informar, por vezes podem apresentar-se frágeis em comparação com os demais elementos.

O espaço cênico é preenchido majoritariamente pelo elenco; a encenação faz uso pontual de adereços e o formato que se assemelha ao de arena é bem aproveitado. A iluminação de Fonseca e Valcrez Siqueira tinge a ágora de diferentes atmosferas, além de criar belos recortes em composição com os atores e atrizes.

“O Santo Dialético” / foto: Giulia Martins

Nos figurinos de Gabriela Morato, a urbanidade de nossos tempos e o mosaico de possibilidades apresentadas se materializam nos jeans retalhados; e as mudanças no figurino durante a obra consolidam a viagem rio acima e mata adentro das personagens em busca de suas origens. Assim como as maquiagens, que parecem sugerir escamas, que vão do acinzentado do concreto ao brilho e a cor de águas cheias de vida.

Camada fundamental é também a música. Sob a direção musical de Bisdré Santos, que também assina as composições originais, as musicalidades do Brasil vão pouco a pouco se apresentado. Se no primeiro ato Santos e os demais músicos — Yago Medeiros e Renato Silvestre — estão longe dos olhos do público, é na assunção do caráter ritual do teatro que ocorre na transição entreatos que a banda desce para o chão e o terreiro se assenta.

Compreender a terra que habita e os meios para assentar-se nela é a busca, consciente ou não, de todas as personagens de “O Santo Dialético”. No início somos apresentados à origem de seus descaminhos, por assim dizer. E acontecimentos — por vezes exagerados — geram as transformações que forçam tais figuras a se confrontarem com quem verdadeiramente são.

Uma cegueira que faz enxergar. Uma voz que convoca. Uma presença que assusta. Um som que convida. Um passado a entender. Caráter comum a estes que buscam a si próprios e às suas histórias é o dado transcendental. Como se não bastasse apenas seguir vivendo para efetivamente ser; existir. Como se, para caminhar adiante, fosse necessário sempre lembrar de seus referenciais. Como se para desaguar no mar fosse importante conhecer a nascente do rio.

E o rio não é um só; assim, a dialética presente no título da obra se consolida na compreensão destas diferentes formas de se aproximar do sagrado que há em cada um de nós. Assim, “O Santo Dialético” efetiva em cena uma celebração ao mesmo tempo da cultura brasileira — em aspecto amplo — e da tolerância religiosa.

A coreografia que encerra o primeiro ato, que em um primeiro momento parece soar como uma espécie de pajelança new age, aos poucos configura-se como um poderoso enaltecimento de diversas manifestações populares — e de devoção — por meio da música, do canto e da dança. No segundo ato, uma singela despedida entre duas personagens também ressalta o caráter de respeito às formas de crer: “axé e aleluia!”.

No resgate de tantos elementos sagrados — que são caros à nossa formação enquanto povo — a encenação de Fonseca concebe a fé como encontro e comunhão. A representação do rito é construída com respeito. No convite ao público, a lembrança de que é de nós que o espetáculo está falando. Deste país de rituais tão específicos e outros tão sincréticos; destas ancestralidades plurais, das que vieram de África, das que por aqui já habitavam as matas e mesmo das que vieram com os colonizadores.

Assumindo caráter mítico e místico no segundo ato, as personagens de “O Santo Dialético” ganham tonalidades arquetípicas. Na barca do indígena seminarista e da moradora de rua convocada à uma missão, é rio acima que se descobre quem se é. As tantas mães que são muitas mas também são uma nos lembram que, se perdidos, nos encontramos mata adentro.

“O Santo Dialético” / foto: Arô Ribeiro