teatro

noés afogados (o que se salva no dilúvio?)

crítica de “O Importado”, solo de Odilon Esteves.

Entre o administrador bem-sucedido Noé e o dinheiro que cai do céu em Nova Iorque está apenas o trânsito da marginal do rio Tietê. De dentro de seu importado vermelho da Alemanha, vê a chuva que o cerca e seu fluxo de pensamentos espelha o dilúvio que se inicia. Em meio à torrente de águas e palavras, juízos geralmente subterrâneos emergem sem qualquer censura.

O ator e diretor mineiro Odilon Esteves dá corpo a este personagem em “O Importado”. A base da dramaturgia é o conto “O Importado Vermelho de Noé”, escrito na década de 1990 por André Sant’Anna. A narrativa em primeira pessoa do texto espirala-se até revelar o âmago deste homem. Como se apanhado pelo vórtice do próprio pensamento, indo água abaixo após apertar a descarga, escancara-se o que antes era escondido: os sustentáculos racistas e sexistas de seu posicionamento liberal, individualista e meritocrático.

Esteves — que, ao lado do também diretor de arte Fernando Badharó, assina a direção do espetáculo — faz excelente uso das repetições do texto, construindo de forma exímia este sujeito. Patético, mas sem deixar de ser crível, o intérprete confere a este Noé a necessária complexidade — ainda que por vezes caia em assumidos exageros — para que não caia em rasa estereotipia ou seja observado com demasiado distanciamento.

Esteticamente, o trabalho sobre o conto é eficaz na medida em que se sustenta em uma interpretação verossímil que joga de maneira pontual com a cenografia. A direção de arte de Badharó escolhe precisamente os símbolos a serem postos na cena — desde a brincadeira com a chuva, elemento presente por toda a narrativa, até as placas que ora refletem, ora limitam a ação.

Odilon Esteves em “O Importado” / foto: Kika Antunes

Há, no conto de Sant’Anna, referências que fazem menção quase direta ao tempo em que foi escrito — “Paulo é meu amigo.” diz Noé; um certo Paulo, que apoiara um certo “prefeito preto” de São Paulo e depois retirara o apoio… — e talvez muito de sua crítica estivesse voltada à superfície do pensamento liberal em voga na época. Na atuação de Esteves, certas escolhas constroem outras referencialidades, potencializando ainda mais a assertividade da crítica presente no discurso do texto.

Neste sentido, é doloroso perceber a violência que ganha um discurso escrito ao ser posto em cena. E talvez mais doloroso ainda seja notar que, hoje em dia, o que seriam revelações obscuras da personalidade de alguém são ideias difundidas com pouca ou nenhuma vergonha. Os Noés de hoje nem precisam ter carros importados para corroborarem com algumas daquelas opiniões; o que poderia ser visto como um arroubo hiperbólico está hoje contemplado dentro da normalidade.

Este Noé contemporâneo se vê verdadeiramente predestinado à vitória. Crente de um Deus que está ao lado do capital internacional e do dinheiro que chove em Nova Iorque, realmente segue acreditando que, por seja lá qual motivo, será ele o escolhido para ser salvo do dilúvio.

No desenrolar da encenação, dentro da trajetória do conto de Sant’Anna, o que se operará é um dilúvio às avessas; envolto dos — para o protagonista — abjetos carros nacionais de pretos, será a arca importada vermelha da Alemanha de Noé que sucumbirá ao subir das águas. A tão clamada salvação divina não acontece — pudera: não há justificativa que a sustente.

Para Noé, porém, há uma expectativa de que a salvação virá. Por trás da lógica que sustenta a vida desta pessoa, há a carga histórica de privilégios que o fizeram estar no lugar que ocupa. Assim como o protagonista, Esteves também é um homem cisgênero branco, cuja origem social está associada, no mínimo, à uma classe média. Quando o ator adentra o espaço cênico e inicia a leitura de uma carta — que se dará em duas partes — ele assume a performatividade da encenação e se implica na reflexão proposta pela obra.

Na primeira parte da carta, em espécie de prólogo, Esteves compartilha dados acerca do processo criativo de “O Importado”; das relações entre loucura e normalidade à polarização política que pode ser vista até no WhatsApp. O espetáculo assume seu posicionamento de forma franca desde este momento inicial, evidenciando para um espectador incauto o teor crítico acerca do que se veria a seguir — e para os sensíveis, o ator pede que “resistam”.

Odilon Esteves em “O Importado” / foto: Kika Antunes

Pois é de fato um ato de resistência vivenciar de forma escancarada a violência dos discursos que nos cercam no Brasil de 2019. De modo que quando Esteves retorna à boca de cena para compartilhar a segunda parte da carta é um bem-vindo alívio. E uma necessária reflexão que se aponta.

As opressões historicamente presentes em nosso país seguem cada vez mais normalizadas dentro do violento cotidiano político brasileiro. Quais as escolhas acerca de lidar com tais questões artisticamente? Em “O Importado”, as palavras de Noé são brutais, e as opções da encenação constroem habilmente a plateia como antagonista daquela figura. O grande acerto de Esteves é perceber que aquele personagem não deve ser visto como alguém distante.

O dedo deixa de apontar para um outro monstruoso e passa a apontar para si próprio. Ainda que talvez existam possibilidades mais radicais no tocante à maneira de realizar tal processo formalmente, é fundamental o posicionamento performativo de Esteves na elaboração da obra. A partir de relatos de suas experiências — e os necessários diálogos com pessoas negras a fim de compreender em relação os efeitos profundos do racismo estrutural — o ator racializa-se, buscando quebrar a costumeira percepção normativa da branquitude que a coloca como universal.

E faz parte do privilégio branco racializar-se ser como uma escolha. Não sendo forçado histórico e socialmente para isso, é possível ao sujeito branco passar toda uma vida sem olhar para a própria branquitude. Frente aos tempos que correm, trata-se de uma escolha cada vez mais urgente. A encenação de “O Importado” não encerra tais questões.

O posicionamento da obra — e de Esteves — é o de se colocar frente à uma possibilidade franca de diálogo, trazendo sempre consigo o dado de incompletude desta ação. Revisitar os próprios privilégios é a necessária compreensão de que a desconstrução é um horizonte na direção do qual se caminha todos os dias. Pois ainda que o dilúvio atinja a arca importada deste Noé, sua estirpe insiste em se proliferar.

Odilon Esteves em “O Importado” / foto: Kika Antunes