arquipélago, destaque, teatro

uma gira cósmica (comer é comunhão)

crítica a partir de O fim é uma outra coisa, com idealização e atuação de Zora Santos (MG). este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Quando entrei no elevador para descer ao térreo do Sesc Avenida Paulista após a apresentação de O fim é uma outra coisa, um homem repousou a mão no meu ombro e disse às pessoas que estava com ele “aí o corajoso, o primeiro a ir lá!”. Ele se referia ao fato de eu ter sido o primeiro a me servir da refeição oferecida por Zora Santos e toda a equipe do espetáculo. Comer é comunhão, e toda a estrutura da obra se desenha em torno da construção deste verbo e deste substantivo feminino – talvez, tanto na acepção religiosa quanto no significado de realizar algo em comum.

A breve interação – que seguiu em comentários sobre a cachaça, parte da sagrada trindade da oração enunciada por Santos e repetida por todo o público (“Em nome da colher de pau, do louro e da cachaça”) – pode ter acontecido por conta da personalidade extrovertida daquele homem. Mas é interessante pensar nela a partir do investimento de O fim é uma outra coisa em dispositivos que promovem uma teatralidade do público ao longo de toda a encenação.



Na obra idealizada por Santos, com direção geral de Grace Passô e Gabriel Cândido, acompanhados por uma ficha técnica inteiramente composta por pessoas pretas, o público é recebido pela intérprete sentada de costas, escutando uma música num espaço que parece quase vazio. Logo no início, Santos pergunta o nome de uma pessoa do público e passa a contar uma história como se fosse uma memória de infância desta interlocutora. Estabelece-se, então, a figura de uma narradora que fala de si sem se anunciar, fazendo do público agente – ou testemunha – daqueles acontecimentos.

Espalhados pelo espaço, acompanhamos Santos nesta viagem de lembranças, reais, inventadas, pessoais, de outrem, enquanto ela faz do teatro um canteiro de obras e sonhos. Ao sair daquela casa – e o último, por favor, deixe a chave no vaso – nos deslocamos para um novo terreno. É uma narrativa de despejo, de ocupações, evocada essencialmente na imaginação de um público convocado a construir junto da atriz.

Enquanto ouvem-se sons de pássaros, vislumbram-se pomares, galinheiros, hortas. Diante de nós, um monte de terra, um microfone, uma cachaça e tudo a se fazer. Temos então a impressão de que se instaura uma linha narrativa na dramaturgia de Dione Carlos e Santos; porém, trata-se apenas de um dos tantos alicerces a sustentar a obra em toda sua multiplicidade. Surgem ali novos dispositivos de certo modo conviviais, que provocam o público não apenas à movimentação mas a uma mobilização que, como aos poucos ficará evidente, sugere envolvimentos outros, para além do ver e ouvir mais tradicionais no teatro.

Uma pessoa carrega um enorme bambu enquanto reorganiza a disposição espacial de espectadoras e espectadores. Outra afia uma faca, ação microfonada, bem perto e por entre as pessoas do público. Então, uma espécie de turíbulo circula pela cena, como que a defumar sons – Teo Ponciano assina o que a ficha técnica nomeia traquitanas sonoras. Depois, revelam-se que são musicistas e músicos (Michael Yuri, Natalia Lima, Renato Ihu e Rubi Assumpção), que cantam, tocam instrumentos tradicionais e constroem sonoridades com objetos cotidianos (sob a direção musical de Maurício Badé), além de interagir em determinadas cenas. O fim é uma outra coisa é espécie de travessia sinestésica, e, ao longo da encenação, integrantes dessa banda, em sua movimentação harmônica pelo espaço entre traquitanas, instrumentos e objetos de cozinha, parecem se tornar tripulantes de uma astronave cruzando os céus sob o comando de Santos.

Tanto a encenação de Passô e Cândido quanto a dramaturgia de Carlos e Santos se desenvolvem na direção de uma gira cósmica, onde o invisível e o concreto habitam um mesmo espaço, onírico e material, de sonhos vívidos e vividos; se no passado há dor, o hoje é alimento e o amanhã se constrói com tecnologias ancestrais e futuristas. A relação de tempos e saberes permeia todo o trabalho, desde o figurino, assinado por Santos, onde papetes neon contrastam com a paleta quente, mas opaca das roupas da atriz e banda-tripulantes, passando pela iluminação de Danielle Meirelles, que transita entre dureza e espetacularidade, estando também incrustada na música e no som (André Papi assina o desenho), entre gêneros diversos e ruídos tornados paisagens. As imensas tranças utilizadas por Santos parecem carregar em si as dimensões da História.

De algum modo, tudo isso orbita a preparação do alimento. Santos, além de atriz, é cozinheira e pesquisadora da culinária afro-mineira. O som é comida, a comida é som, o teatro tem cheiro, o cheiro tem teatro, lá está uma feijoada e um refogado feito na hora – além do molho de banana-da-terra – e não há pressa. Alimentam-se todos os sentidos; O fim é uma outra coisa, entre muitas coisas, é acolhimento e comunhão.

O primeiro, por desde o início a relação entre Santos, espectadoras e espectadores se dar de forma leve, mesmo quando o que se narra é denso. O segundo, por uma bonita aposta da encenação de Passô e Cândido: o alimento se torna dispositivo central no investimento da teatralidade do público citada no começo deste texto. Preparada a refeição – “embora essa mistura nunca esteja suficientemente pronta, ela será oferecida”, diz a sinopse do trabalho – a intérprete se serve e senta em uma cadeira no canto para comer. A iluminação de Meirelles destaca a mesa com o caldeirão, a panela, os potes, talheres, guardanapos e um pote de álcool em gel. Santos demonstra o procedimento: higieniza as mãos, serve uma concha de feijoada mineira, uma concha do molho de banana-da-terra, pega um guardanapo e uma colher. E aguarda. Aguarda. Uma musicista se serve do mesmo modo e se senta entre as cadeiras da plateia. 

No dia em que assisti O fim é uma outra coisa, entendi na hora o código indicado pela obra; assim como, creio, grande parte ou até mesmo a totalidade do público. Esperei. Ninguém se movia. Fui o primeiro a me servir. Mesmo sendo vegetariano, não consegui deixar de pegar uma concha da feijoada. Depois de quase derrubar o talher dentro do caldeirão – o que me fez olhar na direção de Santos como que me desculpando, gerando alguns risos – uma onda de pessoas se levantando. Curiosa essa expectativa em torno de quem será o primeiro e como na sequência as coisas se desencadeiam naturalmente.

Enquanto cada pessoa se servia e voltava para o seu lugar, Santos seguia sentada. Quase tudo que acontecia naquele momento na encenação era isso: comer juntes. Comunhão. Em off, a voz de Santos ecoava a oração já aprendida pelo público. Também, ervas eram listadas entre medicinas e venenos. Neste tempo de servir-se e alimentar-se, distintas relações estéticas eram instauradas; algumas pessoas conversavam, outras observavam o tamanho da fila, algumas repetiam a refeição, e o público se via vendo, se via comendo, se via habitando ali um mesmo espaço-tempo, em comunhão naquele ato, naquela oferenda. Cozinhar talvez esteja entre as tecnologias mais ancestrais que existem.

Depois, Santos sai e vai à varanda fumar um cigarro. Ouve-se um sonho – e O fim é uma outra coisa é também muitos sonhos – e a concha do pai perdida na casa antiga está lá e nela o tanto que objetos cotidianos podem carregar. Dormir, despertar, sonhar; as realidades se borram e a narradora acordou com fome. A encenação brinca com as atenções, dando a ver seus procedimentos enquanto joga com segredos na lida com os espaços do espaço cênico, em cortinas que escondem pelo prazer de revelar.

É enquanto a banda toca que se apresenta a imagem final: Santos está de máscara, sentada em uma cadeira-trono que remete à eternizada no retrato de Huey Newton, co-fundador dos Panteras Negras, em obra cenográfica de Lúcio Ventania confeccionada por Cerbambu. Na estilização da chamada cadeira pavão, há algo também de uma grande parabólica, máquina pronta a lançar Santos na direção de um futuro ancestral. Se à primeira vista os braços para trás podem passar uma impressão de aprisionamento, a altivez da atriz dissipa essa ideia e os movimentos parecem ser mais um elemento da ritualidade que permeia O fim é uma outra coisa.

E o que é o fim? Se é outra coisa, que coisa? O fim é uma outra coisa. Estamos falando de finitude ou finalidade? Talvez ecoe aqui a tão citada frase de Nêgo Bispo (1959 – 2023), filósofo e líder quilombola, que encerra seu livro A terra dá, a terra quer: “Somos povos de trajetórias, não somos povos de teoria. Somos da circularidade: começo, meio e começo. As nossas vidas não têm fim. A geração avó é o começo, a geração mãe é o meio e a geração neta é o começo de novo”. Zora Santos e toda a negrura evocada por O fim é uma outra coisa fazem com o público o que se faz com o tutu e o que ele faz com a gente no giro circular da concha no caldeirão que prepara o alimento dessa gira.

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ficha técnica
O FIM É UMA OUTRA COISA

Idealização e atuação: Zora Santos.
Direção geral: Grace Passô e Gabriel Cândido.
Direção musical: Maurício Badé.
Direção de produção: Lucas Ferrazza.
Dramaturgia: Dione Carlos e Zora Santos.
Musicistas/músicos: Michael Yuri, Natalia Lima, Renato Ihu e Rubi Assumpção.
Obra Cenográfica: Lúcio Ventania.
Confecção da obra cenográfica: Cerbambu.
Figurino: Zora Santos.
Costureiro: Paulo Salai Rogério.
Desenho de luz: Danielle Meireles.
Desenho e operação de som: André Papi.
Identidade visual: Thaís Regina.
Contrarregra: Diego Roberto e Derret.
Beleza: Rapha Cruz.
Hairstyle: Paola Ferreira.
Fotografia: Jerê Nunes.
Assessoria de imprensa: Eliane Verbena.
Social media: Anderson Vieira.
Coordenação de produção e produção de campo: Ketully Oliveira.
Produção executiva: Corpo Rastreado e Casa Cume Produções.
Realização: Sesc São Paulo.