um ato de comunhão
crítica de “O evangelho segundo Jesus, Rainha do Céu”
Ouve-se o barulho de saltos entrando pela porta; cruzando o salão, indo do fundo até o cenário simples – uma mesa, transformada aos poucos em altar. Bebendo o guaraná que leva seu nome, Jesus questiona seus fiéis: aonde pensava o público que o encontraria? Desde o início, o espaço teatral é tornado sagrado por sua presença.
Em “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu”, a dramaturgia da britânica Jo Clifford – artista trans – promove o retorno do filho do Senhor; no caso, filha da Senhora. Jesus aqui é travesti. Renata Carvalho dá corpo e voz a esta espécie de releitura, à luz do contexto atual acerca das construções de gênero, de passagens bíblicas.
A perspectiva contemporânea dos ensinamentos crísticos se potencializa em uma encenação sem grandes invencionismos. A eficácia da obra se encontra na construção precisa de Carvalho – dirigida por Natalia Mallo, que também assina a tradução do texto – e na relação íntima que ela estabelece com o público. A interpretação da atriz é orgânica e transita entre a narração, seus comentários e um forte envolvimento pessoal – por momentos, certas histórias parecem reconstruções poéticas de sua própria vida. No entanto, possíveis emoções vivenciadas pela intérprete não geram oscilações na narrativa.
Carvalho sustenta, de forma carismática e engajada, sua presença cênica. Com extrema leveza conquista o público – ainda que precise, por vezes, lembrá-lo que se trata de um espetáculo interativo – e o conduz, de forma extremamente respeitosa, por valores puramente cristãos. Neste sentido, causa espanto a raivosa reação gerada meramente pelo anúncio de apresentações do “Evangelho”.
A onda conservadora, dogmática e intolerante de setores religiosos escancara sua transfobia nesses casos. Ora, se Deus criou o ser humano à sua imagem e semelhança, por que causa tanto alvoroço a ideia de que um corpo dissidente também possa representar a imagem divina?
Fossem tais críticos assistir ao espetáculo, deixando de lado seus preconceitos, possivelmente sairiam revigorados. No fundo, a sua maneira, a dramaturgia de Clifford na interpretação de Carvalho não faz mais do que reafirmar a grande mensagem que Cristo deixou ao passar por nosso plano: amai-vos uns aos outros.
Certas passagens bíblicas nem exigem grandes esforços de interpretação textual para chegar em uma premissa básica de convivência e construção de sociedades – amar o próximo. E o próximo – graças a Deus – não é igual a nós. É outro. A comunhão nada mais é do que a celebração da alteridade; da diversidade pressuposta pela complexidade que é ser e existir no mundo.
Talvez os menos conhecedores da Bíblia nem reconheçam certas passagens trazidas a cena. Não é difícil, portanto, observar em “Evangelho”, de certa forma, um caráter evangelizador. Tomando como base, evidentemente, a pureza dos ensinamentos que exaltam a importância e necessidade do amor – e do respeito.
Olhando nos olhos daqueles que assistem ao “sermão”, Jesus travesti, sem deixar de lado sua faceta messiânica, também traz consigo lições acerca de uma singularidade coletiva. Carvalho inclui o público em suas histórias não apenas como testemunhas ou personagens, mas as coloca como protagonistas. Saindo do campo estritamente cristão, há a noção da presença do sagrado dentro de cada um.
A obra, seguindo esta lógica, sacraliza-se como um todo. Há um tom litúrgico nas ações da atriz – assim como na própria organização espacial e no uso feito do altar. Movendo as velas, desconstrói-se a representação hegemônica dos apóstolos, jogando-se efetivamente com a questão de gênero – ele que nasceu ela; ela que era ele e ela. Novamente acerca do respeito à religião, um olhar mais generoso verá que não há profanação alguma.
Quando “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” leva um corpo travesti para dentro do campo do sagrado, ela efetivamente faz com que ele deixe de se tornar profano. Ao observar a etimologia desta palavra verifica-se a preposição “pro”, ‘diante de’, ‘perante’, junta à “fanum” – templo ou lugar sagrado. Tudo aquilo que está diante do templo – e não dentro dele, portanto – é o que não é sagrado. Carvalho sacraliza sua presença para garantir sua existência no mundo.
Contextualizando valores cristãos – talvez, melhor dizendo, crísticos – aos nossos tempos, a peça sobrepõe duas leituras ao evidenciar, por um lado, a beleza, potência e importância da emanação do amor e, por outro, ao estabelecer nitidamente seu recorte de gênero, escancara a violência, intolerância e deturpação de valores dos nossos tempos.
Na dramaturgia de Clifford são os artigos femininos que, quase sempre, se referem ao universal. Neste recurso simples, se subverte toda uma estrutura de compreensão da constituição social – e religiosa. De forma sutil, o espetáculo apoia-se em uma estética relacional simples, entre obra teatral e contação de histórias, com a participação mais ou menos ativa do público abrindo campos de pequenos diálogos – onde o timing cômico de Carvalho funciona muito bem – mas sem grandes sobressaltos em sua trajetória.
A encenação efetiva-se enquanto um acontecimento cênico que não exige grandes recursos estéticos para atravessar seus espectadores. Chegando literalmente a se tornar um ato de comunhão, Jesus travesti nos oferece seu corpo e seu sangue. E ainda que na realidade este corpo dissidente siga sendo violado e seu sangue derramado – e messias algum purificará tantos pecados – a oração final, com todos de pé e de mãos dadas, segue buscando espalhar a luz do amor e da compreensão. Louvada seja a Rainha do Céu.