(pseudo-)paraísos artificiais
crítica de “O Aniversário de Jean Lucca”, de Dan Nakagawa.
Com o elenco numeroso todo em cena, “O aniversário de Jean Lucca” começa com uma voz em off recitando um poema em inglês. Em pouco tempo, reconhece-se a célebre “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias. Nada mais pertinente ao nosso contexto atual que uma poesia nacionalista traduzida para a língua inglesa.
O espetáculo com texto, direção e canções originais de Dan Nakagawa dialoga com uma classe social brasileira cujos valores são cada vez mais importados — ao mesmo tempo em que esta disputa, de forma revisionista, a fundação da identidade nacional. Ainda, a chamada “lógica de condomínio” proposta pelo psicanalista Christian Dunker também serve de disparador para o espetáculo.
A família de Jean Lucca vive em uma bucólica casa no que parece ser um condomínio suburbano. O “aqui” e o “lá” de Gonçalves Dias deixam de ser, nesse sentido, Portugal e Brasil; “minha terra” é certamente o próprio jardim. No entanto, nesse caso não há exílio para se retornar — exceto, talvez, o de si mesmos.
Nenhuma personagem em cena tem nome próprio. O aniversariante nunca aparece, assim como a sua amiga, filha dos vizinhos, Maria Júlia, ou o “problemático” cachorro Justin — os únicos referenciados. Pode-se entender, assim, que aquelas figuras no palco não são sujeitos, mas sim representações.
Dessa forma, a crítica inserida no discurso de “O aniversário de Jean Lucca” se torna cristalina — e até óbvia — para o público. O cenário assinado por J.C. Serroni, em consonância com os figurinos de Alex Leandro e Victoria Moliterno, ressalta a construção de uma linguagem extremamente artificial e distanciada. A maquiagem de Tatiana Polistchuk confere aos atores e atrizes máscaras que também evidenciam a teatralidade exacerbada proposta pela encenação.
A relação com os espectadores remete à sitcoms americanas, com direito à claques de risada e palmas executadas pelos atores e atrizes fora de cena, sentados observando — o que reverbera na proposta vocal das interpretações. Na dramaturgia de Nakagawa, uma ironia cáustica se mostra constante.
Assim, as diversas camadas da obra sublinham essa artificialidade presente na vida destas figuras. No isolamento construído não só por muros de condomínios, mas também pela distância que se estabelece entre si e o outro — seja sua esposa, seu filho ou a babá dele — e até mesmo a distância de um em relação à si próprio.
Na trilha incidental executada ao vivo por Polistchuk (cello), Julia Navarro (piano) e André Vilé (sonoplastia experimental ruidosa), a atmosfera de paranoia e até mesmo aversão ao outro parece buscar rasgar de alguma maneira o formalismo técnico das demais camadas. Nas canções, um elenco bem afinado segue reafirmando a proposta de linguagem; e a relação dramatúrgica das letras cantadas com o enredo não se dá de forma direta.
Neste sentido cabe refletir sobre as escolhas possíveis de tensionar forma e conteúdo. A linguagem do absurdo, aqui, se revela interessante — mas ao mesmo tempo, quando a dinâmica é apreendida (o que não demora muito), há o risco da obra cair em certa monotonia.
A ausência de Jean Lucca não se configura enquanto um mistério; pelo contrário. Na relação apresentada entre seu pai e sua mãe, que terceirizam os cuidados para a babá — no caso, a Nanny — curioso seria se a criança aparecesse e interviesse na ação. O que se evidencia é precisamente o que se pretende criticar; ainda que fazendo uso de diversos subterfúgios — ora instigantes, ora nem tanto — o espetáculo parece de algum modo dissociar a proposta formal de seu conteúdo.
O excesso de estranhamento proposto desloca efetivamente o público para um lugar de questionamento e até desconforto; o humor acaba resultando pontual. Vale ressaltar a precisão do elenco dentro da direção de Nakagawa. O formalismo proposto exige um timing específico para funcionar — e mesmo na estreia, no geral, atores e atrizes já se mostravam preparados para tal desafio.
“O aniversário de Jean Lucca” é coerente e brinca dentro de suas proposições estéticas. A crítica social emerge sem grandes surpresas e certas pérolas se revelam na dramaturgia. Tudo ocorre de maneira precisa — o pseudo-paraíso burguês, profundamente repleto de paranoias e tensões, é concebido em toda a sua artificialidade. E da grama ao céu, passando por todas aquelas figuras, é tudo sintético.