tudo que se pode sentir
crítica de Não aprendi dizer adeus, de Leila, simplesmente Leila, palhaça de Barbara Salomé, com direção e roteiro de Rafaela Azevedo. obra apresentada na Mostra Solo Mulheres do Teatro de Contêiner Mungunzá.
Lá no fundo está a morte, mas não tenha medo. Segure o relógio com uma mão, pegue com dois dedos o pino da corda, puxe-o suavemente. Agora se abre outro prazo, as árvores soltam suas folhas, os barcos correm regata, o tempo como um leque vai se enchendo de si mesmo e dele brotam o ar, as brisas da terra, a sombra de uma mulher, o perfume do pão.
Que mais quer, que mais quer? Amarre-o depressa a seu pulso, deixe-o bater em liberdade, imite-o anelante. O medo enferruja as âncoras, cada coisa que pôde ser alcançada e foi esquecida começa a corroer as veias do relógio, gangrenando o frio sangue de seus pequenos rubis. E lá no fundo está a morte se não corremos, e chegamos antes e compreendemos que já não tem importância.
(Julio Cortázar, Instruções para dar corda no relógio, em Histórias de Cronópios e Famas)
Leila, simplesmente Leila, não está só. Atrás dela, vem a morte, figura invisível que insiste para entrar junto da palhaça de Bárbara Salomé logo no início de Não aprendi dizer adeus. As luzes no chão do espaço cênico do Teatro de Contêiner tem um quê de picadeiro, e estar no teatro, onde se abre outro prazo, é dar corda no relógio: sob a direção de Rafaela Azevedo, que divide o roteiro com a intérprete, Salomé navega neste tempo que como um leque vai se enchendo de si mesmo na obra, uma contemplação da finitude que sabe bem fazer graça diante do inevitável.
Não aprendi dizer adeus parte da abertura essencial da máscara de palhace; de sua possibilidade de estranhar tudo da vida, de (re)conhecer o mundo pela primeira vez. Ao mesmo tempo, Salomé também investe em procedimentos menos comuns à palhaçaria na construção de Leila, simplesmente Leila: o despudoramento, geralmente reconhecível sob o prisma da ingenuidade, é aqui carregado de libido. Um certo flerte com a bufonaria permite à palhaça jogar de formas inesperadas com o público em sua derradeira trajetória.
Com a morte batendo na porta, Leila propõe diversas tentativas, desesperadas, de lidar com o inevitável. Não aceitar que ela faça parte da realidade, tentar enganá-la, entrar em uma espiral de drogas e prazeres… até que, por fim, ao alcançar um estágio de aceitação, coletivamente se ritualiza o momento da passagem. Todo o movimento final de Não aprendi dizer adeus é de extrema delicadeza, envolvente e plasticamente belo.
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Antes de emocionado e reflexivo, o público também se diverte bastante. O roteiro de Salomé e Azevedo estrutura uma trajetória muito bem desenhada em suas nuances, conduzindo os espectadores pelas tantas sensações que uma meditação em torno da morte pode evocar. Nos improvisos de Leila, simplesmente Leila, nas tantas relações estabelecidas com pessoas da plateia, é visível sua escuta atenta, pensamento ágil e preciso timing cômico. Salomé, de coração aberto, faz do tema sensível ponte para encantamentos – e encontrou, na Mostra Solo Mulheres, uma calorosa e entusiasmada audiência.
A consciência de nossa finitude é assustadora. Mas o medo enferruja as âncoras e a vida tem de ser movimento. Em A morte de Ivan Ilitch (1886), Lev Tolstói conta a história de um homem que só ao ser acometido por uma terrível doença se dá conta de que viveu em vão. Nas cerca de 60 páginas da curta novela, o autor apresenta Ivan Ilitch, sua origem, sua juventude, seu casamento, seu trabalho, sua doença e seu fim.
Ivan Ilitch via que estava morrendo, e o desespero não o largava mais. Sabia, no fundo da alma, que estava morrendo, mas não só não se acostumara a isto, como simplesmente não o compreendia, não podia de modo algum compreendê-lo. (Lev Tolstói, A morte de Ivan Ilitch)
No ano seguinte da primeira publicação da obra, Tolstói viu-se ele próprio doente, pensando se tratar de algo incurável, e em uma carta para sua tia escreve que nenhum homem que tem a infância atrás de si deveria esquecer-se da morte por um só minuto, tanto mais quanto a sua espera constante não só não envenena a vida, mas lhe empresta firmeza e claridade (o autor viria a viver por mais 23 anos).
Não sabemos a idade de Leila, simplesmente Leila. Nem nada de sua vida pregressa. Mas no brilho dos olhos da palhaça, todas as pessoas podem ver-se, ali, no momento presente. Não aprendi dizer adeus mostra que meditar sobre o fim é contemplá-lo em sua plenitude, entre riso, choro e tudo que se pode sentir.
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ficha técnica Não aprendi dizer adeus Idealização, roteiro e atuação: Bárbara Salomé Direção e Roteiro: Rafaela Azevedo Iluminação: Júlia Orlando Figurino: Fagner Saraiva Cenografia: Thiago Capella Zanotta Criação Sonora: Monique Salustiano Produção Executiva e Coordenação geral: José Sampaio Criação de Peruca: Erick Malccon (Artesão das tranças) Fotografia: Caio Oviedo Arte Gráfica: Gabriela Prestes Assessoria de Imprensa: Kátia Calsavara Apoio: Espaço Artes Lab
Que beleza de reflexão sobre o espetáculo e sobre a finitude. Tão lindo e importante texto♥️