destaque, reflexões, teatro

sobre os fins de mundos: uma reflexão crítica da 7ª MITsp (2020)

ensaio escrito por amilton de azevedo em abril de 2020 a convite da produção da MITsp, dentro do escopo de sua atuação como crítico interno da programação da 7ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo.

na imagem em destaque, Maria Galindo em “A Jaula Invisível” (MITsp 2020) / foto: Guto Muniz

1. do privilégio de ver e ouvir

A Mostra Internacional de Teatro de São Paulo (MITsp) chegou à sua sétima edição no início de março de 2020. Nos anúncios, o intervalo de 5 à 15 do terceiro mês do ano; na prática, um início anterior a isso. Desde fevereiro, pessoas interessadas – e selecionadas – já estavam participando de ações da MITsp: a residência artística com os britânicos do Quarantine começou no dia 13/2, enquanto o primeiro dia do Laboratório de Experimentação: Vozes Dissonantes (LABEXP1) foi 29/2.

Mas não é a isso que me refiro neste início de reflexão. As primeiras ações públicas aconteceram no dia 02 de março [1]. Neste dia meu caminho dentro da 7ª MITsp começou a se desenhar. Convidado pela produção do festival para construir uma crítica interna, como uma espécie de ombudsman, tive o privilégio de vivenciar a MITsp como um todo; o que é, por motivos diversos – desde as possibilidades de deslocamentos até a oferta de ingressos, além das seleções e lotações em certas atividades – uma oportunidade de pouquíssimas pessoas.

Vivenciei 13 dias de encontros extremamente ricos. Senti na pele a potência do convívio (e quem diria que, pouco mais de um mês depois, estaríamos todos isolados?). Talvez seja desnecessário dizer o quanto essa experiência me foi cara, considerando meus aprendizados e trocas artístico-ético-políticas com pessoas e contextos diversos dentro deste escopo do festival.

Como observador, tive um enorme privilégio de me fazer presente para apenas ver e ouvir – o que é muita coisa – o que emergia dos tantos encontros. Quando conversei com a direção da MITsp, tanto Guilherme Marques quanto Antonio Araujo deixaram evidente que gostariam que eu circulasse livremente pelo festival, sem que algo fosse determinado previamente por eles.

O único pedido foi que eu levasse em consideração os quatro eixos – Mostra de Espetáculos, MITbr – Plataforma Brasil, Ações Pedagógicas e Olhares Críticos – do festival, compreendendo que eles são os pilares da MITsp. Assim o fiz; apenas como forma de organização, localizo aqui meus números: estive presente em 43 ações ao longo destes 13 dias, sendo 10 espetáculos da Mostra de Espetáculos, 2 espetáculos da MITbr, 14 ações dos Olhares Críticos e 15 das Ações Pedagógicas (além de eventos classificados como Ações Especiais: duas mesas dos Seminários Anticoloniais).

Não é uma quantidade pequena; ainda assim, muito ficou de fora – sinto, especialmente, pela pequena atenção que dei para os espetáculos nacionais da MITbr. Um  ponto de partida importante para esta reflexão é a compreensão da dimensão da MITsp. É realmente um trabalho louvável de curadoria, produção, logística, técnica, etc. que merece ser reconhecido por isso. Desde sua primeira edição, em 2014, sua relevância é também inequívoca. Os desafios de produzir uma mostra de tal dimensão podem ser, por vezes, hercúleos – ainda mais considerando-se o contexto das políticas públicas para a cultura em nosso país.

Nada disso isenta a MITsp de críticas. Penso, porém, que em alguns momentos se demanda dela algo além de seu escopo. Do que uma mostra deve dar conta? O que se espera de uma MITsp? São questões cujas respostas plurais podem inserir a mostra em um lugar quimérico, que é eminentemente de potências mas também de grandes riscos e dificuldades.

O presente ensaio traz consigo um olhar, ora mensageiro de obviedades, ora propositor de equívocos. Parto da percepção de que a programação da 7ª Mostra Internacional de Teatro trouxe dentro de si a própria autocrítica. Basta o exercício de parar para ouvir. Dessa forma, farei um exercício de construir pontes para esta reflexão sobre o todo e aquilo que vi e ouvi em diferentes momentos da programação. São muitas as reverberações em mim, que inclusive transcendem o lugar da simples crítica interna. A (minha) curadoria para esse ensaio é a de quem organiza percepções de uma experiência; entre a realidade, o possível e o ideal.

2. da desigualdade dos eixos

Depois desta breve introdução, parece pertinente localizar quais são os eixos e pontuar questões sobre eles; suas potências e fragilidades: como eles são – ou não são – vistos. O carro-chefe é sem dúvida a Mostra de Espetáculos, amplamente divulgada, com ingressos em sua maioria rapidamente esgotados. Conscientemente, escolho falar dela apenas mais adiante.

Pois surge aqui um primeiro ponto fundamental para refletir sobre a MITsp: ao compreender os quatro eixos como pilares do evento, me parece necessário refletir sobre a desigualdade entre eles para além de uma pretensa horizontalidade. Aqui talvez se entremeiem questões alheias à MITsp; o interesse da cobertura de imprensa, as possibilidades de verbas a partir de apoios diversos, enfim. Neste sentido, falo como quem participou das ações, sem o conhecimento do planejamento.

Neste ano a MITbr – Plataforma Brasil, sob a curadoria de Alejandro Ahmed, Francis Wilker e Grace Passô e talvez o eixo mais afetado pela pandemia do covid-19 pelo cancelamento de apresentações, ainda que sem representantes do Centro-Oeste do país, trouxe obras de 8 estados diferentes, buscando fazer jus ao próprio nome (ainda que 4 das obras selecionadas, quase ⅓ do total, tenham sido de São Paulo).

Não apenas pelos cancelamentos devido ao fechamento de equipamentos da prefeitura de São Paulo, mas também pelos arranjos de minha programação, assisti apenas à violento., no Centro Cultural da Diversidade (Itaim Bibi) e à Meia Noite, no Teatro Alfredo Mesquita (Santana). Entrarei em questões relativas a essas localizações mais adiante – houve nesta 7ª MITsp algumas pontuais descentralizações geográficas, e é importante refletir sobre elas.

A MITbr é anunciada como uma plataforma de internacionalização de espetáculos – e as obras são efetivamente vistas por dezenas de programadores e curadores de festivais ao redor do mundo [2]. Mas é inviável pensar que a função única de uma apresentação teatral seja conseguir mais apresentações em outros lugares. Ainda mais ao considerar a oportunidade incrível que é para o público paulistano (e os tantos que viajam para a cidade para acompanhar a MITsp) assistir a tais obras que dificilmente chegam em São Paulo.

Tive a sensação de que o público comum é um pouco delegado ao segundo plano neste sentido. Talvez seja um desafio balancear na prática ações voltadas para a logística dos programadores e uma atenção e respeito às demais pessoas que vão assistir. Passei por duas experiências diversas neste sentido: assisti ao primeiro espetáculo em uma sessão onde não haviam programadores – ao menos não os vi. No segundo, lá estavam eles – eram a maioria na plateia; o que deixava nítido que poucas pessoas de fora da MITsp foram assistir. Creio que tenha sido o único eixo onde não presenciei nenhuma lotação máxima – mas faço o mea culpa, lembrando que acompanhei apenas duas apresentações.

Os Olhares Críticos carregam consigo uma característica basilar para esse transbordar desejado pela edição da MITsp. Em suas variadas ações, funcionam na transversalidade entre temáticas e procedimentos de todos os eixos – com certa ênfase na Mostra de Espetáculos. Nos debates, tentativas de articulação estético-políticas transitavam por variadas questões.

As ações atreladas diretamente às apresentações de espetáculo foram um pouco confusas. O Pensamento em Processo parecia não seguir a uma forma específica; acompanhei a três cujas dinâmicas foram bem distintas. Nos dois Diálogos Transversais que estive presente, a realização pareceu ficar aquém da ideia original.

Algumas mesas mereciam mais tempo ou uma dinâmica outra; um pensar sobre seu formato. Seja pelo número de pessoas a falar ou pelos desdobramentos da temática, por vezes as duas horas eram muito pouco. Os olhares conectados com o contexto da mostra proporcionaram momentos fundamentais para a reflexão sobre ela. Nas tensões de suas propostas, foi possível pensar por diversas óticas sobre colonialidade e decolonialidade, mesmo quando não era precisamente este o tema. Foram raros os casos onde os desvios do cerne da proposta não se mostraram extremamente ricos.

Os eixos que se localizam fora dos palcos são lugares de experiências que escapam, no melhor sentido, da discussão meramente artística; transbordam, transgridem, de fato. Talvez sejam os lugares de maior risco da MITsp, considerando a imprevisibilidade de seus desdobramentos. Há uma potente distância entre as expectativas e propostas da curadoria com os caminhos que cada encontro segue.

No documentário exibido no dia 02 de março (Enquanto Falávamos Sobre Performatividades Políticas Eu Ocasionalmente Furtava Vozes E Rostos – Uma Crítica Audiovisual Das Ações Pedagógicas Da Mitsp, de Matheus Parizi), a curadora das Ações Pedagógicas Maria Fernanda Vomero diz em uma conversa que este talvez seja o eixo mais insubmisso da MITsp; o lugar do transgredir. De fato, é assim que ele se desenha, ainda que por vezes corra como uma programação subterrânea – visto o baixo número de inscrições de certas oficinas (O futuro é fluido chegou a ser cancelada; Vamos Caminhar Juntas? teve um número alto de inscritas e uma baixa presença) e a presença esparsa em alguns dos eventos abertos, como na riquíssima roda de conversa Trans*pedagogias do afeto diante das políticas de morte, com Lia Garcia.

Há a necessidade de um olhar mais atento a este eixo. Foi onde testemunhei o maior número de questões técnicas e de produção – casos pontuais, é verdade, mas sintomáticos. Isso posto, a insubmissão das Ações Pedagógicas tornam-no um eixo que caminha livre, quase paralelo aos demais, o que traz consigo dados muito positivos – como a presença maciça de artistas latino-americanos, em oposição aos demais eixos.

Salve engano, excetuando-se a peça chilena Tu Amarás, do Bonobo Teatro, na Mostra de Espetáculos, e a presença da também chilena Paula González Seguel em uma das mesas do Seminário Perspectivas Anticoloniais, não houve eventos fora do eixo das Ações Pedagógicas com artistas e pensadores da América Latina.

Essa independência, ainda que louvável, gera um certo descolamento entre este eixo e as demais ações da programação, o que pode causar esta subterraneidade de seus caminhos. Contrapõe-se a essa colocação o fato de ter sido este o eixo que propôs as duas ações da MITsp que criaram ficções e fricções com o espaço público [3].

Sobre a Mostra de Espetáculos, penso que muito já foi escrito no tocante aos espetáculos em si – para além das críticas publicadas no site do festival, uma série de outros portais também cobriu a MITsp – incluindo o ruína acesa, onde publiquei sete textos. Dentro dos Olhares Críticos, os residentes da Prática da Crítica construíram debates entrecruzando as obras e demarcando rotas de reflexão, em diálogo com a curadoria. Foram obras relevantes e diversas – ainda que dentro de um contexto eminentemente europeu – que tangenciam múltiplas linguagens da cena.

Um dos caminhos apontados no debate Cena Contemporânea: Panoramas Críticos foi a abordagem de uma perspectiva de fim do mundo nos espetáculos. Com tons variados: um êxtase devastado em Multidão; o pós-apocalipse ecológico de Farm Fatale; o berço da civilização destruído em Contos Imorais – Parte 1: Casa Mãe; enfim: são muitas as formas de se olhar para o fim de vários mundos.

Phia Ménard, durante o Pensamento em processo após a apresentação de Casa Mãe, disse: eu não tinha vontade de escrever sobre o fim do mundo – pois creio que não quero viver o fim do mundo. Paula González Seguel, durante o LABEXP2, falando sobre a situação do Chile e de outros países da América Latina: que tudo queime, que tudo arda; para que algo diferente possa ser construído. Ailton Krenak, durante a Mesa 1: Do tempo, dentro do Encontro Perspectivas Anticoloniais: eu não estou interessado em adiar o fim do mundo.

O que cada um de nós chama de mundo e quais são estes devires-fins? Ao fim desta minha imersão nos quatro eixos da MITsp, percebi cada vez mais óbvia a impossibilidade de se pensar em qualquer pretensa universalidade – principalmente quando contaminada de uma colonialidade que, como afirmou Krenak, se despista ao nosso redor.

O presente ensaio desenvolve reflexões que se costuram, incipientes ou evidentes, a partir de falas, obras e ações presenciadas ao longo da 7ª MITsp. Citações surgiram e surgirão quando necessárias; é importante dizer que quase a totalidade deste texto se sustenta nas ideias dos tantos outros que tive o privilégio de ver e ouvir naquelas duas semanas de festival.

Novamente, o aviso: talvez alguns pontos sejam quase lugares-comuns nas críticas feitas à MITsp; a obviedade delas, no entanto, pode soar como um aviso de que é necessário ouvi-las com mais atenção. Outros podem resultar incrivelmente equivocados, até no sentido de não levar em consideração questões de ordem organizacional; se ocorrer algo assim, será por ignorância do autor e não má-fé ou desrespeito.

3. um ensaio entre o real, o ideal e o possível

Mostra Internacional das Travestis. Essa possibilidade outra para o acrônimo foi proposta ao menos em duas ocasiões por Dodi Leal, curadora da Encontra de Pedagogias da Teatra: durante o Sarará Trans e no Pensamento em processo com Travis Alabanza após a apresentação de Burgerz. Há muito o que se celebrar neste sentido: não foram poucas as cobranças e críticas à MITsp em relação ao olhar sobre a produção artística – a nível nacional e internacional – de pessoas trans. Se a participação nos últimos anos já vinha aumentando, nesta edição houve realmente uma justíssima atenção neste sentido.

Além das já citadas Phia Ménard e Travis Alabanza, a Mostra de Espetáculos contou também com Jo Clifford e Renata Carvalho em um especial de dez anos do Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu. Carvalho, aliás, foi a Mestra de Cerimônias da abertura oficial da MITsp – ao lado de Gabriel Lodi – e, durante a conversa com Alabanza, fez a última fala dentro da programação do festival: a 7ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo foi iniciada e encerrada por uma travesti. É simbólico.

Mais ainda é notar que, antes disso, outra artista trans estava performando – infelizmente, aos olhos de muito menos gente. Na segunda-feira, Lia Garcia, La Novia Sirena, apresentava sua performance Cicatriz nas escadarias da Casa do Povo. Durante sua ação, Garcia evocava nomes de pessoas trans para que vítimas da violência não fossem esquecidas. Leal, em sua maldição proferida ao iniciar e encerrar algumas ações, nomeou todas as trans que participaram desta MITsp. No show de Danna Lisboa (dentro do Sarará Trans), a artista falou sobre transformar dor em arte. Garcia usava pérolas em Cicatriz – o produto do sofrimento de ostras. Na maldição de Leal, outra evocação: que passemos sem ser passageiras. 

Que o que ocorreu neste sentido na 7ª MITsp se torne uma baliza e que seja disso para mais. O festival continua a ser majoritariamente cisgênero; nos palcos, uma mudança surge no horizonte – e que se reitere aqui a qualidade artística dos trabalhos apresentados, não apenas sua relevância política por se tratarem de pessoas trans – mas é importante estar atento para que o festival esteja construindo alianças de fato com artistas não-cis; é uma linha tênue para o que Garcia nomeou extrativismo acadêmico no sentido de construir relações e realizar ações voltadas apenas ao capital político agregado neste ato.

Penso que não é disso que se trata neste caso; ainda assim, é fundamental pensar estruturalmente: que mudanças estão acontecendo nas reflexões mais amplas e na lógica do festival como um todo? Além destas pessoas ocupando os espaços da cena e da reflexão – e também deveriam estar nos de produção, de logística, enfim, em todos os espaços – é importante pensar sobre onde elas estão no público. Não que pessoas trans formem um coletivo homogêneo de interesses, mas me causa estranhamento sua ausência quase que absoluta da maioria das oficinas e outras ações – a MITsp ainda é majoritariamente cisgênera e branca.

Aqui parece oportuno ampliar esse questionamento para um ponto também insistente nas colocações e críticas à MITsp: para quem ela é feita? Neste ano, a maior descentralização que percebi foram as Ações Pedagógicas na sede da Cia. de Teatro Heliópolis, no Ipiranga, além de apresentações da MITbr nos equipamentos da prefeitura mais distantes do centro expandido – destacando-se talvez apenas o Teatro Alfredo Mesquita, na Zona Norte, mas podemos considerar o Teatro Cacilda Becker e o Tendal da Lapa, na Zona Oeste, e, com um pouco de exercício mental, o Centro Cultural da Diversidade no Itaim Bibi, também Zona Oeste.

Observe-se que não se tratam, de modo algum, de bairros periféricos. Para além da geografia paulistana, houve também uma escolha do que seria descentralizado: com exceção do Teatro Cacilda Becker, que recebeu O que fazer daqui para trás?, nos outros espaços apenas obras brasileiras e eventos do eixo insubmisso. Aqui pesa a questão das instituições parceiras e de como a maioria delas se localiza na região central da cidade, imagino.

Importante apontar para um dado positivo nos locais das atividades: para além da facilidade de acesso por meio de metrô na grande maioria dos casos, a proximidade permitia um trânsito mais dinâmico entre as ações – no sentido daquelas e daqueles que se programaram para acompanhar vários eventos no mesmo dia.

Para além disso, não basta apenas ocupar um espaço distante do centro para que haja uma efetiva descentralização e o alcance seja maior. Talvez esteja muito além das possibilidades da MITsp pensar ações de divulgação ou mesmo de formação de público nas regiões que recebem ações, mas é importante considerar a relação entre a geografia e os públicos-alvo; furar, de algum modo, a bolha.

Como ampliar este para quem se faz uma MITsp? Não se trata apenas da comunicação, mas do pensamento que sustenta as curadorias e as propostas. É mais um momento de fricção; por um lado um exercício de imaginação, mas fundamentalmente de escuta. Como disse o argentino Lisandro Rodriguez em seu Encontro Agonizante, trata-se de olhar o outro com ternura, ouvi-lo, em toda a sua contradição.

Na oficina Autoria em Jogo, os chilenos Pablo Manzi e Andreina Olivari, do Bonobo Teatro, também abordaram essa questão das contradições: estamos presos no antagonismo. Dentro da ideia de autoria proposta pelos artistas, uma provocação foi feita no sentido de que o espectador só se move diante de uma obra pois seus criadores também o fizeram. A MITsp está em movimento, e isto gera movimento(s).

Ainda assim, há muito a se fazer – e sempre haverá. Durante a primeira mesa do Seminário Perspectivas Anticoloniais, um artista no público (Juão Nyn) questionou a curva de aprendizado da Mostra, que parece ir atendendo a uma demanda por vez; a questão seria, então, da representatividade como token – algo semelhante ao que Lia Garcia falou acerca do capital político atrelado ao engajamento com certas atividades.

Me colocando aqui como ombudsman, é difícil tirar a razão de Juão; ao mesmo tempo, reflito novamente sobre o que se espera de uma MITsp. Nesta edição em particular, pode-se dizer que o mote transbordar e transgredir foi atingido pontualmente: na Mostra de Espetáculos, esteticamente, talvez; em algumas ações dos demais eixos, sem dúvida. Há sempre o que se problematizar – e isso é fundamental para que se construa um diálogo que transborde a duração de uma edição, que se desenvolva ao longo dos planejamentos futuros.

É necessário transgredir também as próprias expectativas e modos estáveis de produção. Talvez aqui esteja mais próximo do campo ideal do que do possível, mas me permito a transgressão. Desestabilizar o como fazer: desde a forma proposta em debates, algo que já aconteceu em outras edições – como as aulas públicas, para citar um exemplo – e nas Conversas Performáticas desta 7ª MITsp, até os mecanismos escolhidos para responder às demandas de nossos contextos, sejam eles éticos, estéticos, artísticos ou políticos – categorias que cada vez menos se pode lidar de forma estanque. 

Evidente que aí existem limitações das diversas ordens – burocráticas, financeiras, institucionais – mas o que ainda podemos imaginar juntxs? Durante o seminário Curadoria na Encruzilhada, uma fala de Daniele Avila Small faz pensar: seria possível um internacional sem Europa? A MITsp insere-se dentro do fluxo do capital simbólico, cultural e – mesmo que de forma limitada – financeiro mundial. Como transgredir esse fluxo? Pois ainda que tenhamos visto uma grande presença de corpos trans em comparação com outras edições, ainda nos deparamos com uma baliza europeia do teatro e, por consequência, da contemporaneidade – eminentemente branca.

Conforme afirmou Erika Malunguinho durante o Sarará Trans, é necessário compreender raça como fundamento, não como diversidade. É uma das questões indesviáveis [4] do nosso país. Grazi Medrado, durante o excelente seminário Contradições no debate da cultura como bem comum, pontuou que não se trata de representatividade, mas de qualidade de presença. Este seminário, aliás, marcou um dos debates mais ricos e densos sobre a estrutura da MITsp, com ênfase nas suas relações com a negritude. Duas horas foram muito pouco.

Essas questões indesviáveis acabam surgindo mesmo quando não são pauta central das ações por serem, de fato, indesviáveis. São debates cuja relevância deve transbordar para o entendimento de que certas problemáticas se mantêm em processo constante; não se encerram em um acerto, não se impossibilitam em um erro.

Outro exemplo, aqui se tratando de gênero: o fato da MITsp ter realizado a Encontra de Pedagogias da Teatra, sob a curadoria de Dodi Leal, não soluciona o fato de apenas uma artista trans – Lia Garcia – estar em uma atividade das Ações Pedagógicas fora da Encontra. Dentro da Roda de Conversa: Pedagogias de Transição, Vulcânica Pokaropa Costacurta e Amara Moira falaram um pouco sobre isso. Não se trata de criar uma falsa oposição entre exclusividade ou integração, mas de conceber ambos.

No Pensamento em processo de Burgerz, surge algo em paralelo com isso: artistas trans não precisam ser convidadas apenas para falar sobre gênero. Assim como na Prática da Crítica, uma crítica trans não precisa escrever só sobre espetáculos feitos por pessoas trans – tampouco críticos negros devem estar circunscritos à obras de teatros negros.

É óbvio que o olhar de quem compartilha deste lugar de fala des artistes criadores é importante. Mas parece cada vez mais importante transbordar estas localizações; para que estes marcadores sociais estejam amalgamados à programação. Talvez resida aí a ideia de diferença sem separabilidade, trazida por Eleonora Fabião no seminário Perspectivas Anticoloniais. Imbricar estes fundamentos – raça, gênero; também o fundamental pensamento de classe (como seria na prática?) – profundamente na estrutura da MITsp.

Durante a Roda de Conversa: Pedagogias de Transição surgiu uma organização pertinente dos efeitos do conceito lugar de fala: a ideia de que ele opera entre a nitidez e os impedimentos da percepção no olhar para certas questões. Ao observar a equipe da MITsp, há uma presença maciça de mulheres; questões feministas são, portanto, percebidas com nitidez. É fundamental construir alianças interseccionais dentro da própria estrutura de pensamento e produção de um festival desta dimensão – mesmo que isso signifique desestabilizar certos saberes. 

Talvez essa proposta esteja desconsiderando os desafios concretos da realização da MITsp. Mas é que foram precisamente os momentos de maior transgressão – até em sentido metafórico; no ato de criar irrupções em campos determinados de possíveis – os pontos altos desta edição. Como quando Jé Oliveira, Grazi Medrado, Jaqueline Elesbão e Gyl Giffony, ao lado de Carla Akotirene, apontam para algo ocorrido no pitching da MITbr que se revela sintomático do olhar do festival sobre os artistas com obras na Plataforma Brasil – a ausência de um tradutor – enquanto Akotirene há pouco apontava exatamente para a necessidade de atenção às demandas específicas de artistas cujos saberes e linguagens não se encaixavam dentro das expectativas de editais (e, por extensão, de festivais).

Assim como é potente o caminhar de Preto Amparo perseguido por um carro de polícia de brinquedo no início de violento. e a amplificação da imagem na fricção com seu espaço: o Itaim Bibi e seus prédios espelhados que não refletem a violência no condado dos farialimers – ainda que talvez esse contexto não tenha sido exatamente pensado enquanto proposta.

Ou quando o show de Danna Lisboa enche o palco da Sala Adoniran Barbosa de corpos trans no encerramento do Sarará Trans, um momento icônico para a MITsp. Também o olhar de Phia Ménard para o público depois de seu ato de criação e destruição; frente às ruínas de uma cisvilização, talvez.

A Jaula Invisível de Maria Gallindo também entra neste rol de momentos memoráveis da 7ª MITsp; e serve quase como metáfora para toda essa autocrítica – aqui ambicionando muito além do possível, admito. Na recusa de tudo aquilo que a aprisiona, incluindo até mesmo a linguagem, Gallindo clama pela compreensão do feminismo como um projeto de sentidos. Uma recusa de terminologias conhecidas e olhares já gastos para questões tão diversas e candentes. Seu pensamento parece ir na mesma direção de Ailton Krenak quando fala sobre a necessidade de inventar mundos para existir.

Uma Mostra Internacional de Teatro é pensada para o(s) mundo(s) que existe(m) em todas as suas belezas e contradições. Mas serve também para a produção de seus fins e de outros sentidos possíveis – muitos, nem tão novos assim. Estamos vivendo um contexto que atropela nossas sensibilidades. É o momento de imaginar juntxs; compreendendo as tantas especificidades que habitam o comum.

4. o entrave e a encruzilhada

Há um esgotamento na MITsp. Não digo necessariamente em sua forma, mas o cansaço das pessoas envolvidas é visível. As relações estremecidas – algo por vezes externado publicamente, em outros momentos sutilmente notado – entre curadorias, produção, direção… É necessário olhar para esse dado de humanidade; ternura foi uma palavra-chave para mim dentro desta edição. A radicalidade deste afeto no olhar para o outro, na lida com o contraditório.

Talvez uma das coisas que se espera de uma mostra é que ela faça sentido. Para quem acompanha, para quem participa, para quem produz, para quem realiza, para quem concebe. Isso é muita coisa. Também é verdade que, como José Fernando Peixoto de Azevedo comentou no seminário Curadoria na Encruzilhada, se espera tanto da MITsp porque só há uma. A questão deveria ser por que não temos dez MITsps?

O fato é que temos uma. Um dos maiores eventos do calendário da cena teatral paulistana. Em tempos de escassez, a dimensão do evento parece ter se tornado um inimigo. O elemento mais rico que a MITsp possui é seu capital humano; se isso se deteriora, nada mais vai bem. No texto de Daniele Avila Small e Luciana Romagnolli, o tom de despedida da curadoria dos Olhares Críticos. Nas falas de Maria Fernanda Vomero no seminário supracitado, uma série de inquietações e um pedido: que a MITsp não se finja inabalável.

José Fernando, aliás, apontou para uma contradição no nome escolhido para esta ação. Os debates ali realizados estavam em um entrave, não em uma encruzilhada. A encruzilhada é um lugar onde se instauram mundos. No entrave das curadorias ali discutidas, o que emergia parecia versar sobre o inverso, sobre as tantas impossibilidades que surgem nas tentativas de imaginar juntxs.

A 7ª MITsp aconteceu em um período turbulento não apenas na política nacional, mas no contexto global de uma pandemia. Suas obras, com recepções diversas, provavelmente marcaram uma miríade de espectadores. As Ações Pedagógicas e os Olhares Críticos devem ainda reverberar por muito tempo naquelas e naqueles que os acompanharam.

Aliás, será que há como medir essa ressonância? Construir mecanismos que mapeiem aquilo que continua quando se encerra a MITsp? Os desdobramentos, projetos que nasceram a partir de convívios e provocações: é uma questão talvez pertencente ao campo das artes presenciais como um todo dentro de suas insuperáveis efemeridades – o que insiste em permanecer?

Ainda que não se possa mensurar a eficácia das ações propostas pela MITsp no sentido daquilo que consolida-se de fato como atravessamento, é uma possibilidade rica para se considerar: o que acontece entre uma mostra e outra? Tanto no escopo da realização e produção quanto das participações – sem esquecer dos espaços que sediaram o evento e as pessoas desses lugares. Um mapeamento da produção de sentidos, que extrapolam um intervalo espaço-temporal.

Pois é um acalanto ter a reafirmação de que o esforço está valendo a pena – e está. Daqui para frente – ou daqui para trás – o que virá? Teatros fechados, festivais suspensos e cancelados; a vida segue. Que a oitava edição da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo e as tantas que virão a seguir possam ser cada vez menos entraves e mais encruzilhadas.

notas

[1] A saber: Ensaios Anticoloniais: Estudos Compartilhados, no Goethe Institut; a performance Cicatriz, prevista para a Oficina Cultural Oswald de Andrade, mas que ocorreu nas escadas da Casa do Povo – que também abrigou a exibição do documentário Enquanto Falávamos Sobre Performatividades Políticas Eu Ocasionalmente Furtava Vozes E Rostos – Uma Crítica Audiovisual Das Ações Pedagógicas Da Mitsp.

[2] Cabe apontar o fato de constarem no site 34 programadores europeus versus cinco latino-americanos de fora do Brasil (3 chilenos, 2 argentinos) – e apenas um africano. Insiro como rodapé por compreender que a discrepância entre o número de festivais de teatro na Europa e em América Latina influencia tais dados, algo além do escopo da MITsp; ainda assim, penso ser uma reflexão importante a ser feita: quais são esses caminhos de internacionalização dos espetáculos brasileiros?

[3] Desde a Caminhada Noturna: Mulheres em Marcha à Meia-Noite, nas ruas do entorno da Av. Paulista, até o experimento cênico Como Não Saber Juntos: O Que Fazer Daqui Para Trás_in Situ com seus participantes correndo em torno da Oficina Cultural Oswald de Andrade, passando pela instalação performativa Olho No Olho: Quem Consegue Ser Visível Na São Paulo De Hoje? no Centro Cultural São Paulo (CCSP), entre outros exemplos.

[4] A expressão foi dita por Grace Passô durante o seminário Perspectivas Anticoloniais – Mesa 2: Das Ações.


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