teatro

disparadores e traduções

crítica de “Marta, Rosa e João”, com direção e dramaturgia de Malu Galli.

foto: Mabel Feres/divulgação

No começo de “Os Arcanos Maiores do Tarô”, G.O. Mebes afirma que o Tarô “é considerado um esquema da cosmovisão dos Iniciados da antiguidade”; e segue: “consequentemente, o Tarô pode ser considerado como um alfabeto iniciático”. Na introdução da tradutora Marta Pécher, ela explica que o título original, “Enciclopédia do Ocultismo”, se justifica pelo fato de que “toda e qualquer manifestação no mundo por nós habitado apresenta uma faceta de um destes 22 Arcanos. Os mesmos abrangem a totalidade da vida da nossa Humanidade atual, decaída”.

Ainda refletindo, em um sobrevoo sobre estes oráculos do ocultismo, cabe também citar o astrólogo João Acuio em texto publicado dia 21 de fevereiro na página da escola de astrologia Saturnália: “Oráculo é todo e qualquer jogo, aberto sob o signo do acaso, que se estrutura e fala segundo gramática própria e versa sobre a sorte e suas vicissitudes. (…) O oráculo é estrutura narrativa, produz trama de significados. (…) Baralho, runas, estrelas — o material do jogo pouco importa, o que interessa é a narrativa fruto do lance de dados. (…) Quem busca o oráculo o faz na ambição de dar pernas ao Destino, este ator invisível”.

Além do sagrado presente no jogo de Tarô, há uma relação deste com o profano. De acordo com a tradição, segundo Mebes, os conhecimentos antigos foram ocultos sob a forma de um baralho, legado aos não-iniciados, exatamente por saberem que, devido ao hábito do jogo, eles chegariam à posteridade.

É neste trânsito entre o dado arquetípico oracular do tarô e a possibilidade de utilizar o acaso como dispositivo que Malu Galli propõe “Marta, Rosa e João”. Galli assina a dramaturgia e a direção, além de atuar. No programa, ela anuncia sua intenção — utilizando a abertura de um Tarô na primeira cena, quando da visita de uma personagem (Rosa, interpretada por Manoela Aliperti) à uma cartomante (Katia Naiane, espécie de curinga na encenação), estabeleceu uma regra e escreveu a peça a partir disso.

No entanto, ainda que o programa do espetáculo afirme que o Tarô “atua não como tema, mas sim como um dispositivo”, é inevitável refletir acerca da relação das cartas com as cenas — visto que o nome de cada um dos Arcanos sorteados no dia é inserido na cenografia por Naiane. Neste sentido, “Marta, Rosa e João” acaba por ficar no meio termo — considerando que o Tarô é um alfabeto iniciático, aqueles que não o conhecem não estabelecem efetivamente a relação entre a ação cênica e a carta em questão.

Não é algo que em si seja problemático — muitos dos nomes dados aos Arcanos são extremamente sugestivos, e a relação construída entre as personagens em cena abre um campo de leitura interessante para o público. Mais do que o simbólico contido no dispositivo, talvez o que chame atenção sejam outras dificuldades trazidas à tona no risco assumido pela encenação.

Marta, Rosa e João

Manoela Aliperti, Rodrigo Scarpelli e Malu Galli em “Marta, Rosa e João” / foto: Ligia Jardim

O que por um lado é um grande mérito na dramaturgia de Galli revela-se também uma questão de certo modo limitante. Das 22 cenas escritas, são treze as apresentadas a cada dia — em ordens aleatoriamente definidas. Ou seja, a obra deve se compartimentar o suficiente para poder organizar situações que se encerram de algum modo nelas e ao mesmo tempo compõem uma linha mais ampla da trajetória da ação.

O que acaba por ocorrer é uma armadilha: na ânsia de não inserir no texto informações repetidas ou acumulativas — alcançado por uma escrita por vezes quase cifrada, mas ainda interessante — a peça não estabelece um grande arco dramático que possibilitaria uma maior verticalidade no desenvolvimento das personagens e suas relações.

Também há o risco assumido do ritmo do espetáculo variar muito de uma apresentação para a outra — na compartimentação dos quadros, situações parecem mais potentes se inseridas em um ponto certo da obra — seja no começo, no meio ou no fim.

A proposta de Galli enfrenta sem grandes sobressaltos essas questões. Atuando como Marta, oscila um pouco de acordo com as cenas — por vezes, parece aderir à uma interpretação impostada. Já as atuações de Rodrigo Scarpelli, divertindo-se no papel de João, um passeador de cães que age como o Louco do Tarô, confundindo e elucidando as demais personagens entre metáforas e duras realidades, e de Aliperti, aproveitando com sutileza sua expressividade, conseguem extrair o melhor dentro das questões suscitadas pelas trajetórias diversas a cada dia. Naiane também está bem, mas sua figura — tanto no enredo, quanto para a linguagem da encenação — poderia ser mais utilizada.

Como na própria apresentação do dispositivo — o áudio em off que explica a dinâmica do espetáculo caberia muito bem na boca da cartomante, que inclusive já reitera o que está sendo feito. A possibilidade da comunicação direta com o público, presente não apenas na cartomante mas na maioria das aparições de Naiane, redimensiona a relação do espectador com a obra; também é algo a ser mais explorado.

Na sucessão de quadros dramáticos, o que se constrói como um quebra-cabeça é a viagem de Rosa para a casa de sua — ausente — mãe, Marta. Na constante presença do passeador de cães João, que desestabiliza uma relação já bem instável, laços familiares e afetivos se desdobram, tendo a questão da maternidade como algo central.

Marta, Rosa e João

Manoela Aliperti, Malu Galli, Rodrigo Scarpelli e Katia Naiane / foto: Mabel Feres/divulgação

Como se Rosa, jovem e grávida, buscasse entender o porquê de Marta ser como é para que ela entenda o que pode significar ser mãe. Tais leituras são possibilitadas de forma sutil; em jogo, parece estar a relação da mulher com suas escolhas profissionais e a maternidade. Em uma das cenas vistas, João, longe de aparentar ser uma figura paterna, fala sobre cães e como eles agem em casa e na rua; entre seus iguais, com ou sem coleira. A metáfora em relação às demais personagens está quase dada, mas ainda assim pouco se conclui.

As últimas cenas, pela maneira com que são tiradas no Tarô inicial e por sua própria forma, parecem fixas: O Mundo e O Louco servem de fechamento para os três personagens, ainda que Rosa não apareça.

A reconstrução da relação de mãe e filha, transformada por esse convívio, é seguida pela provocação libertária de João. Como numa abertura de oráculo, talvez fosse importante uma tradução mais generosa. Resta ao público a ambição de dar pernas ao Destino apresentado no palco.