transcriar contextos: a complexidade para além das expectativas
crítica de “Máquina Branca”, dos Agrupamentos Andar7 e Cynétiko
Em tempos de crises da representação — dentro e fora dos palcos — o que significa dizer “nós”? No início de Máquina Branca, espetáculo com dramaturgia de Ave Terrena Alves e direção de Luciana Ramin e Otávio Oscar, a atriz Fábia Mirassos está na plateia, cantando e interagindo com o público que entra. Na sequência, em espécie de prólogo que já introduz a narrativa a ser apresentada, está falando sobre suicídio.
Na apresentação assistida, um fato que ocorreu neste momento chamou a atenção. Quando Mirassos pergunta aos espectadores se, ao tentar nos suicidarmos, somos “nós” que fazemos isso a nós mesmos, um espectador assumiu a questão de um modo diverso.
Mirassos, protagonista do espetáculo, é trans — assim como Alves, dramaturga. E assim como o homem na plateia, que entendeu este “nós” não como “pessoas em geral”, mas como “nós, população LGBTQ+”. Ainda que talvez este questionamento se localize um pouco distante do que trata o espetáculo, é significativo como ponto de partida para uma reflexão fundamental para a cena contemporânea: que corpos estão em cena e com quais corpos eles dialogam? Pela cisnormatividade embutida no olhar da maior parte de nossa sociedade, parece haver uma performatividade quase inevitável inscrita no corpo trans.
Na interessante dramaturgia de Máquina Branca, a estrutura se localiza entre o conteúdo de Um Bonde Chamado Desejo, de Tennessee Williams e uma certa inspiração formal na fragmentação de Hamlet-Máquina, de Heiner Müller. Em um pequeno quitinete no centro de São Paulo, chega Branca (Mirassos) para viver uns tempos com a irmã Stella (Daíse Neves) e seu namorado Stanley (Felipe Stocco). Lá conhece Michel (Heron Sena — substituído durante a temporada por Daniel Veiga) com quem se relaciona.
Para além do espelhamento das personagens e acontecimentos da obra de Williams, há uma escolha interessante que redimensiona a encenação. Em sua entremeada narrativa, Alves opera uma dupla transcriação de tais obras. Primeiro pela inserção da questão de gênero da protagonista: Branca é uma mulher trans — sua irmã sabe, e ambas preferem esconder isso dos demais; segundo, pela compreensão não apenas do espelhamento possível das obras de Müller e Williams, mas de como lidar com duas personagens femininas tão significativas quanto Blanche e Ofélia.
Muitas vezes observadas sob a ótica da loucura, são figuras cuja complexidade é comumente diminuída e tem sua humanidade marginalizada. Neste sentido, a escolha de Alves de inserir na dramaturgia trechos do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, publicado em 2013 pela American Psychiatric Association, traz à luz um debate extremamente caro para a população trans, que até hoje enfrenta a patologização de suas existências.
Na encenação de Ramin e Oscar, camadas se misturam pelo uso do vídeo e da iluminação. Branca, Blanche, Ofélia e Mirassos transitam por seus universos e pulsões de modo orgânico — assim como Stella é também Ofélia e, de certo modo, Michel esbarra em Hamlet. As leituras cruzadas das obras não se colocam óbvias — e nem são essenciais para a fruição de Máquina Branca. No entanto, é interessante notar as adaptações feitas por Alves, como na potente cena onde Mirassos e Neves revisitam performaticamente A Europa da Mulher, de Müller, ou mesmo o clássico monólogo de Hamlet na boca de Branca.
Nas contextualizações de onde se passa a ação, um Brasil muito próximo se anuncia criticamente, ainda que não se localize exatamente as consequências dos fatos narrados — a escolha da imagem de uma bola com as cores da bandeira nacional representando o filho de Stanley e Stella por nascer corrobora o desenho de um futuro sombrio.
Para além da relevância já presente no fato do trabalho ser escrito e protagonizado por pessoas trans — além de Alves e Mirassos, Veiga, que substituiu Sena ao longo da temporada, é um ator trans — há ainda que se destacar duas coisas. Máquina Branca é um excelente exemplo de como artistas contemporâneos podem revisitar obras clássicas com tremenda força, o que se verifica na transcriação da dramaturgia de Alves, com citações e samples — e que encontra em Mirassos uma atriz extremamente talentosa para viver sua protagonista.
Outro ponto fundamental é a assunção de uma complexidade que se desdobra para além das expectativas. A figura de Branca é extremamente controversa. Muito de seu discurso se localiza na interseção de sua identidade de gênero com sua raça; tal problemática também é abordada nas demais construções: Branca é mulher trans e branca; Michel é homem cis e negro, e Sena, seu intérprete, aborda questões que entrecruzam raça e sexualidade de um modo por vezes confuso ou mesmo arriscado (com Veiga no papel, outras questões devem emergir); Stella, mulher cis e branca; Stanley, homem cis branco, é o único cuja representação não o insere em minorias — ainda que no depoimento pessoal de Stocco haja uma tentativa de aproximação de outras questões.
Neste sentido, então, o que se verifica é a busca da obra por de fato mergulhar em complexidades presentes nas relações contemporâneas. Os mecanismos de produção dos discursos hegemônicos — e a irrupção dos contra-hegemônicos — se apresentam a partir do conflito daquelas quatro pessoas em um pequeno apartamento. Debatendo construções de discursos e identidades, Máquina Branca nos lembra que o conflito entre subjetividades está sempre sujeito à hierarquias e jogos de poder.
Saudades dessa peça. Ao reler esse texto, relembro da grande travessia q foi a criação dessa peça. Das contrações e contradições daquela época. Quem sabe um dia retomo e publico. Q bom q a crítica quando escrita com co.promisso e sensibilidade TB pode ser memória viva do seio de nossos tempos.