teatro

nos ventos que sopram tudo o que existe

crítica de Leste, uma produção da Casa do Povo com direção e dramaturgia de Martha Kiss Perrone.

Um teatro em ruínas passa longe de ser um teatro arruinado. No subterrâneo da rua Três Rios, no Bom Retiro, o Teatro de Arte Israelita Brasileiro (TAIB) ainda pulsa. De seu balcão, vemos o pano que cobre o palco; um espaço que hoje está vazio, mas ontem abrigou vida. No silêncio que grita entre os sussurros do público, uma voz passa a dizer. Uma língua errante, falada originalmente por comunidades judaicas do leste europeu, anuncia Leste, produção da Casa do Povo com direção e dramaturgia de Martha Kiss Perrone: eu sou o iídiche.

Manifestações culturais celebradas em iídiche foram submergidas – como explica o rico programa do espetáculo – pela Segunda Guerra Mundial. Com a Shoah, a dispersão forçada de um povo fez com que suas tradições corressem o risco de desaparecer. Leste é uma entre tantas possibilidades de resgate, celebração, e de contar as histórias em torno destas existências.

Quando o diretor judeu polonês Jakob Rotbaum escreve Um Sonho de Goldfadn, em plena guerra, ele “​​procura no teatro a salvação de um mundo que está desmoronando” (texto do programa de Leste); e o faz a partir das personagens clássicas de Abraham Goldfadn, considerado o pai do teatro iídiche. Em 1948, a obra foi encenada em São Paulo, no Teatro Municipal, com artistas que faziam parte do dramkrayz (“círculo de teatro”), grupo especializado no repertório iídiche que participou ativamente da construção da Casa do Povo e do TAIB. 

A encenação de Perrone contou com a colaboração de Hugueta Sendacz, hoje com 95 anos, filha de Pola Rajnstazjn, então atriz do dramkrayz e intérprete da montagem de 1948, não apenas para a tradução dos manuscritos da peça mas também em um trabalho de sua memória, enquanto espectadora, da relação entre as músicas originais e as personagens da obra.

É inevitável traçar paralelos entre esse bonito ato de memória e a narrativa que se estabelece em Leste. Entrar no TAIB e vê-lo em sua atual condição pode ser por um lado triste; por outro, é fundamental pensar que se há ruínas, é porque antes havia ali um edifício, um empreendimento. Se há ruínas, é porque algo aconteceu; algum vento soprou de outros cantos.

E por mais que um espaço seja um eco do que foi, algo insiste em existir. Uma voz sem pátria, sem patrões, habita de forma efêmera por onde passa e de modo permanente quem a entende. O iídiche é errante e essa é sua força; Leste se pergunta se é possível “cantar no tom certo uma língua desconhecida” e o que emerge é exatamente a construção de um campo de possíveis para isso.

A herança da ruína é beleza e resistência. Perrone propõe uma série de relações com o vazio para que o público os preencha com os ventos que neles sopram. A direção de arte de Frederico Ravioli, na cinematografia, pauta-se por um lado na representação de cenários vinculados à montagem de 1948, mas na materialidade dos espaços, na cenografia da instalação, é fundamentalmente hiato, espelhamento e contemplação – assim como a fotografia, em seus planos ora duplos ora dialógicos ora até mesmo ruídos, assinada por Paula Serra, João Atala, Cris Lyra e Ariel Schvarztman (a extensa ficha técnica, aliás, revela o quanto de cinema há na obra cênica, em seus tantos e importantes nomes e colaborações).

Arrebatados pelos ecos de muitas vozes e passados no horizonte do TAIB, o público se vê então diante de seu reflexo; disposto em plateias como corredores, com duas telas completando o inusitado quadrilátero. No centro, é o vazio que convida à reflexão. Nas imagens, projeções de grandes jantares oferecidos pela Casa do Povo naquele mesmo espaço. Tempos se sobrepõem e se intercalam entre espectadores, entre obras. Três andares acima das cadeiras rotas do TAIB, diante do vazio, estabelece-se um espaço de invenção de mundos.

Perrone chama Leste de um “teatro em exílio no cinema”. É uma síntese da linguagem proposta pela encenadora que também resvala em muito de seu discurso: uma fantasmagoria se configura enquanto presença na obra. Seja na voz sem território que se apresenta ali, seja nas personagens que, em dado momento, abandonam o teatro e ganham as chuvosas ruas completamente ermas de um Bom Retiro escuro e pandêmico.

Seriam as diásporas conjunções coletivas do exílio? Uma e tantas línguas, culturas, povos, forçados a dispersar-se e estabelecer novas raízes. Muitos lestes sopraram vidas, artes, ideologias, políticas. E talvez seja o teatro um dos melhores pousos para estes tantos ventos.

Um campo de manufatura de sonhos. Um Sonho de Goldfadn apresenta uma trupe em seu teatro e a insistência diante da impossibilidade: diante do despejo, seguem irredutíveis em seu trabalho de produção de imaginários – mesmo que dormindo; mesmo que exilados no mundo onírico.

No fundo, parece mesmo que Leste é uma imensa celebração do teatro e de sua interminável convocação ao imaginar. A obra olha para a obra nas telas instaladas diante de si próprias. O público olha para seu duplo, mas entre eles há o vazio. No centro está o vazio, e ele se move e se preenche com as histórias que se atravessam.

Nas narrativas que emergem diante do contexto e seus tantos enquadramentos ficcionais, o talentoso elenco compõe de formas distintas essa paisagem de celebrações e resistências. Rodrigo Bolzan é das primeiras vozes que ouvimos, no relato em torno de sua atuação nos palcos do TAIB, e essa informação alimenta a trajetória do ator-partisan de Um Sonho de Goldfadn

Por outro lado, no que emerge como uma exaltação à potência da representação, Amanda Lyra interpreta ao mesmo tempo a feiticeira que quer manter o teatro vivo e a dona do espaço que quer fechá-lo, construindo o contraditório como jogo possível e fundante das artes da cena.

Celebração e resistência. A mobilização sonhadora de Oyzer é dele e também de seu intérprete, André Lu. Ali vislumbramos os múltiplos ventos que seguem soprando o tanto que existe. Nas canções Klezmer tradicionais, (re)inventadas pela banda Bodka. Na participação das integrantes da Cooperativa Emprendedoras Sin Fronteras. Nas imagens da construção do TAIB e no testemunho de suas ruínas. Leste é exílio e fantasmagoria; diásporas, povos e línguas. Passado e assombroso presente.

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