teatro

iconoclastia em construção

crítica de “ANTIdeus”, de Carlos Canhameiro

O trabalho constante de um operário erguendo uma parede – ou muro – na frente da cena, as diversas realocações dos elementos cênicos, operações de aproximação e distanciamento além da construção e desconstrução de linguagens e propostas ao longo de “ANTIdeus”, com direção e dramaturgia de Carlos Canhameiro, remete à um discurso também em permanente elaboração. Assertiva – e até mesmo agressiva, a obra se desvela em uma trajetória por vezes retilínea, onde a relação dramática constrói o conflito, por vezes da crueza da imagem que, ainda que poética, lança ao público sua mensagem de forma incisiva e dolorosa.

Trata-se de uma crítica ferrenha não apenas às diversas religiões – nenhuma é especialmente poupada – mas da relação do humano com o sagrado em sua própria vida. E o sagrado, diga-se, não é só a íntima parte que pertence à espiritualidade; em cena, o figurino provoca os indizíveis: uniformes de futebol e adereços religiosos – além do pano de fundo político, apresentado logo no início do espetáculo. Não há tabus que sobrevivam à história. Não há mais a possibilidade de fingir que certas coisas não se discutem; os fatos se sobrepõem à essa frágil narrativa da diversidade e da tolerância.

Dividido em basicamente duas camadas, “ANTIdeus” mira tanto na sensibilidade afetiva quanto na racionalidade dura, ainda que não sejam ideias estanques, pois mesmo nos momentos mais imagéticos do espetáculo a poesia segue a serviço do discurso e da realidade e, nas cenas mais dialógicas, música e movimentação tendem a dissolver uma atmosfera de puro embate de ideias. Apesar de certa de onde parte e a quem está mirando, apesar de uma crítica poderosa ser construída e apresentada, a discussão sobre o que fazer a partir disso tudo segue sem resposta clara, sem um caminho certo a se seguir. E não poderia ser de outra maneira.

Extremamente embasada e também por isso violenta, a encenação e a dramaturgia de Canhameiro dão as mãos para se servirem mutuamente. Enquanto na camada mais dialógica – dramática – os atores conversam sobre o sagrado, o profano, os prós e os contras das instituições religiosas e das crenças em si, há outra camada que transita entre o épico, o lírico e o performático e é nessa onde a crítica ganha potências de outra ordem. Se ao ouvir aquelas pessoas, em um jantar, “blasfemando” em suas palavras e atitudes o acesso do público pode estar em uma chave mais leviana, lendo aquilo como bobagens cotidianas, é nas interferências de outras linguagens que o discurso dá o salto poético e ganha corpo. Difícil lidar com a realidade nua e crua; com um mundo desesperançoso onde os feitos do homem passam cada vez mais longe de possibilidades de milagres.

Dentro desta construção violenta, em alguns momentos parece haver um excesso, um exagero até proposital – não basta ouvir e compreender um discurso, há de se ser massacrado por ele até que de alguma forma isto de fato reverbere, incomode, ofenda, doa, transforme. É a destruição de Deus não pela construção de sua ausência, mas por uma ode à presença humana.