lava leva alaga eleva inunda afoga afunda
crítica de Hip-Hop Blues – Espólio das Águas, do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos
Celebrando seus (mais de) 20 anos de Teatro Hip-Hop, o Núcleo Bartolomeu de Depoimentos está prestes a entregar para o mundo o livro A Palavra como Território – antologia dramatúrgica do teatro hip-hop, pela Editora Perspectiva, que terá sua festa-rito de lançamento no próximo dia 02 de maio, no Teatro de Contêiner. Ali, as palavras faladas, cantadas e vividas ao longo de duas décadas materializam-se enquanto texto. Enquanto isso, o grupo estreia seu 15º trabalho no palco do Sesc Santana: Hip-Hop Blues – Espólio das Águas, com direção de Claudia Schapira, é simultaneamente uma dobra sobre a própria trajetória e um campo de lançar porvires.
O Núcleo Bartolomeu, como enunciado no nome do grupo, trabalha a partir de depoimentos. O procedimento é explicado em cena deste Hip-Hop Blues em seus dois caminhos – o depoimento da personagem, a partir das pesquisas em andamento, e o depoimento pessoal. Há uma espécie de virada performativa nos últimos anos do Bartolomeu: sem largar mão de operações épicas e de narrativas que buscam constantemente representações coletivizantes e coletivizadoras de nossa sociedade-mundo, a cada obra parece abrir-se mais um campo para estes caminhos do contar que nascem de vivências individuais dos corpos-identidades que compõem a cena – compreendendo-os enquanto subjetividades e sujeitos históricos em movimento.
Quando o grupo coloca seus tristes sonhos em ação, é significativo que o elenco dialogue – epicamente – a partir de quais marcadores da diferença os atravessam. Sem perder de vista a interseccionalidade, também se pode observar o recorte feminino e feminista das obras destes anos 2010 que antecederam Terror e Miséria no Terceiro Milênio (2019): na ocupação Território Temporário – Mulheres em Trânsito, além do inédito cortejo insurgente Saia da Frente!, o público pode acompanhar as diversas cavalgadas-voos em tempestades do porvir com apresentações de Antígona Recortada (2013), Memórias Impressas (2015) e Efeito Cassandra (2016). (BadeRna, de 2014, ficou de fora da programação; mas o ímpeto de friccionar uma figura histórica à quem se é e o que se vive na atualidade reafirma o recorte evidenciado aqui).
Tais características, desejos e anseios não surgem do éter; somam-se à pesquisa continuada do grupo, fundante da linguagem do Teatro Hip-Hop no Brasil, os acontecimentos socioculturais e históricos do tempo que nos tocou viver, como afirma o Bartolomeu no folder virtual de Hip-Hop Blues. O texto segue: tempos de guerra e pestes, também de levantes e insurgências.
Assim como em Terror e Miséria, o Núcleo Bartolomeu localiza a ação de Hip-Hop Blues em um espaço de ensaio. Porém, se ali havia uma espécie de representação metateatral de atores e atrizes propondo suas cenas, agora há um desejo de falar diretamente a partir dos depoimentos – o elenco divide com Schapira a autoria da dramaturgia, e a encenação toma como fio condutor o fluxo das águas que lavam, levam, alagam, elevam, inundam, afogam, afundam…
São fragmentos que partem, um a um, das pessoas no elenco. Falas e ações ora harmoniosas, ora dissonantes – pois vêm de lugares e reflexões amplas e diversas. A água torna-se metáfora de muito. Do que está há muito subterrâneo, do que chega de forma avassaladora, do que vem para lavar, do que vem para afogar. E, ainda, como já disse Brecht, do rio que tudo arrasta se diz que é violento / mas ninguém diz violentas / as margens que o comprimem. Pelo palco, goteiras disparam a constante movimentação dos baldes da cenografia – toda branca – de Marisa Bentivegna. Atores e atrizes parecem tentar estancar, sem sucesso, essa sangria d’água.
Mas com ela também se pode elevar a si e a tantas e tantos ao redor: Nilcéia Vicente, em canto, palavra e presença, toma o centro do palco como a grande mestra de cerimônias de toda a ação. A figura da atriz-MC é basilar no trabalho do Núcleo Bartolomeu – o trabalho de Roberta Estrela D’Alva em Orfeu – uma hip-hópera brasileira (2012) rendeu-lhe o Prêmio Shell de melhor atriz – e, ainda que todo o elenco interprete a partir desta chave, é Vicente quem parece ordenar a cena. Em seu depoimento, evoca sua avó. Depois, é em torno dela, ela própria mãe das águas, uma atenta Oxum, que as narrativas emergem e relações se estabelecem, entre afetividades possíveis e comentários sobre as ações.
A cidade, neste espólio das águas, é personagem a contrapêlo – sendo a cultura hip-hop urbana por excelência, é sobre o asfalto que se cantam-contam seus blues. Em uma miríade de territórios em São Paulo, essa rua tem o nome de um rio que a cidade sufocou, como canta Luiza Lian: e uma enchente lembra a população / que o que é rua antes era vazão. Neste Hip-Hop Blues, a vazão é esse resgate daquilo que já havia muito antes das muitas violências, opressões, hierarquias.
Diante do retrato da própria juventude, Dani Nega reflete sobre quem se era e o que se faz a partir disso – ecoa, aqui, o depoimento de Eugênio Lima em Orfeu: sou quem fiz que sou. Pois quando se fala do que já havia muito antes não se trata meramente de um tempo linear, mas daquilo que é fundante; daquilo que é fluxo como o rio, ainda que subterrâneo, canalizado, retificado, assoreado. É, antes e acima de tudo, rio.
Quando Lima organiza em torno de si uma série de discos de vinil, um espólio possível de um alagamento onde nem tudo se perde, evoca naqueles LPs uma breve historiografia da cultura negra que pulsou e segue pulsando mesmo quando sufocada. Na trilha sonora, além da presença do guitarrista Daniel Oliva em cena, trazendo o blues nas cordas (como já havia feito ao lado do spoken word de Estrela D’Alva em Slam Blues, de 2014), a direção musical assinada por Lima, Estrela D’Alva e Nega é atravessada por samples que ecoam enquanto procedimento, processualidade e dramaturgia.
Linn da Quebrada, Lil Nas X, a icônica introdução de Still D.R.E: still the beats bang still doing my thang – os beats seguem batendo e o Bartolomeu reafirma o que fez, faz e segue fazendo. E depois que Vicente canta um blues que materializa a ideia da obra, a voz de Baco Exu de Blues chega como ressonância: a partir de agora, considero tudo blues / o samba é blues, o rock é blues, o jazz é blues / o funk é blues, o soul é blues / eu sou Exu do Blues / tudo que quando era preto era do demônio / e depois virou branco e foi aceito, eu vou chamar de blues / é isso, entenda, Jesus é blues.
Aliás, os três nomes do artista soteropolitano evocam presenças da obra do Núcleo Bartolomeu: se Baco é a romanização do deus do teatro Dionísio e Blues está no nome e na alma do espetáculo, Exu é quem surfa nas ondas do asfalto neste espólio das águas.
A entidade é saudada coletivamente na dinâmica proposta por Kiki Domaleão, drag afro tupini queen de Cristiano Meirelles – Laroyê! – e é a energia de sua falange, do povo das ruas, que permeia muito da obra. No depoimento de Meirelles, a violência homofóbica transmuta-se em uma intensa, sensual e provocativa dança; uma celebração do ainda estar vivo, viva, vive. Eu ouvi um Laroyê?!
Também, quando Estrela D’Alva veste o boné de modo que seu rosto fica encoberto, o funk de MC Neguinho do Kaxeta é cantado quase como um ponto; nos palcos ocupados pelo Núcleo Bartolomeu de Depoimentos há sempre um tanto de terreiro. A mesma atriz-MC leva à cena um não-saber; um depoimento sobre a dificuldade de formular o que dizer nestes tempos urgentes. É a voz de Nêgo Bispo que surge, em gravação, na tentativa de nortear (ou, talvez melhor, sulear) os passos adiante.
Bispo, Matriark, Reinaldo Oliveira, Adeleke Adisaogun Ajiyobiojo, Aretha Sadick e Zahy Guajajara: outras presenças, em áudio e vídeo, também compõem com os fragmentos vistos no palco. Nas projeções de Vic Von Poser, imagens de águas, ouros e letras somam-se à gravação de depoimentos diversos das pessoas convidadas; em diálogo com o cenário de Bentivegna, elas parecem estar sobre a grande mesa no fundo da cena. Vozes pretas, trans e indígenas compartilham suas gotas e enchentes – Guajajara, por exemplo, oferta um rezo para artistas e públicos: sabedorias ancestrais seguem pulsantes de desejos de futuro.
Antes de chegar à cura, no entanto, há além das denúncias e resistências também o enfrentamento das próprias representações: o depoimento de Luaa Gabanini divide-se em dois momentos onde se lança luz à questões em torno das demandas por representatividade e, fundamentalmente, da branquitude. O teste de elenco, onde Gabanini contracena com Vicente, de algum modo faz lembrar da Cruz de Giz brechtiana apresentada pelo Bartolomeu em Terror e Miséria: Georgette Fadel, que, assim como Gabanini, é uma atriz branca, dialogava com as pessoas negras do elenco em uma chave de desconfortável humor, beirando o cinismo.
O movimento das águas é, então, refluxo. Implicando-se na questão, Gabanini constrói uma figura que, de cabeça baixa e rosto oculto, gesticula e gesticula, girando, em busca de formas de organizar e encarar uma questão que é tudo, menos simples. A atriz revolta suas próprias águas na tentativa de, como ela diz, refluxogerar transformações que partem de um racializar-se enquanto pessoa branca, entendendo a branquitude como uma construção histórica que nos atravessa mas que também atravessamos – então, como escapar deste fluxo e refluxogerar novos possíveis?
Nos fragmentos de Hip-Hop Blues – Espólio das Águas, lavam-se almas, inundam-se sistemas, afogam-se dores e amores. As narrativas-depoimentos, cada uma como gota prestes a transbordar o balde, constituem, de modo ora mais turvo, ora mais cristalino, um uno: tantos rios que se encontram na busca de desaguar em um mar-amanhã coletivo, justo e belo. Ainda que chova e chova e chova. Que dessas goteiras se faça enchente.
[colabore com a produção crítica de amilton de azevedo: conheça a campanha de financiamento contínuo para manter a ruína acesa!]
foto de capa: Matheus José Maria ficha técnica Hip-Hop Blues - Espólio das Águas Núcleo Bartolomeu de Depoimentos Direção: Claudia Schapira Dramaturgia: Claudia Schapira e elenco Concepção Geral: Núcleo Bartolomeu de Depoimentos Atores/Atrizes-MC’s: Cristiano Meirelles, Dani Nega, Eugênio Lima, Luaa Gabanini, Nilcéia Vicente e Roberta Estrela D’Alva Guitarra: Daniel Oliva Direção musical: Dani Nega, Eugênio Lima e Roberta Estrela D’Alva Músicas: Núcleo Bartolomeu e elenco Assistência de direção: Rafaela Penteado Cenografia: Marisa Bentivegna Criação e operação de luz: Matheus Brant Assistência de iluminação: Guilherme Soares Criação e operação de vídeo: Vic Von Poser Assistência de cenografia: César Renzi Cenotecnia: César Rezende Assistência de vídeo: Beatriz Gabriel Direção de movimento: Luaa Gabanini Técnica de spoken word e métricas: Roberta Estrela D’Alva e Dani Nega Técnica de canto blues: Andrea Drigo Técnica de sapateado: Luciana Polloni Danças urbanas: Flip Couto Participações especiais vídeo: Adeleke Adisaogun Ajiyobiojo, Aretha Sadick e Zahy Guajajara Participações especiais áudio: Matriark, Reinaldo Oliveira e Nêgo Bispo Pensadores-provocadores convidados: Luiz Antônio Simas, Luiz Campos Jr. e Celso Frateschi Engenharia de Som: João de Souza Neto e Clevinho Souza Intérprete Libras: Erika Mota e equipe Figurinos: Claudia Schapira Figurinista assistente e direção de cena: Isabela Lourenço Costureira: Cleuza Amaro Barbosa da Silva Direção de produção, administração geral e financeira: Mariza Dantas Direção de Produção Executiva: Victória Martinez e Jessica Rodrigues [Contorno Produções] Assistência de produção: Carolina Henriques e Helena Fraga Coordenação das redes sociais: Luiza Romão Assessoria de Imprensa e Coordenação de Comunicação: Canal Aberto – Márcia Marques, Carol Zeferino e Daniele Valério Programação Visual e Desenhos: Murilo Thaveira Fotos divulgação: Sérgio Silva Agradecimentos Lu Favoreto, Estúdio Nova Dança Oito, Pequeno Ato, Galpão do Folias, Lucía Soledad, Marisa Bentivegna, Colégio Santa Cruz – Raul Teixeira, Périplo Produções serviço Hip-Hop Blues - Espólio das águas Datas: 25/03 a 24/04/2022 Horários: Sexta e Sábado às 21h e Domingo e Feriado* às 18h (*Quinta-feira, 21/04, feriado de Tiradentes, haverá sessão às 18h) Local: Sesc Santana (Av. Luiz Dumont Villares, 579, São Paulo – SP, Tel.: 11 2971-8700) Prefira o transporte público: Jd. São Paulo – 850m | Parada Inglesa – 1.250m Duração: 1h30 Recomendação etária: 12 anos Capacidade: 330 lugares Ingressos: R$ 40,00 - Inteira | R$ 20,00 - Meia (concedida para estudantes, maiores de 60 anos, credenciados do Sesc na categoria plena, professores da rede pública e portadores de deficiência).