uma (não-)teatralidade cúmplice
crítica de Hay que tirar las vacas por el barranco, das companhias La Caja de Fósforos (VEN), La Máquina Teatro (ESP) e Circuito de Arte Contrajuego (VEN/BRA), apresentada no MIRADA 2022.
Nos dois primeiros monólogos que estruturam Hay que tirar las vacas por el barranco, projeto das companhias venezuelanas La Caja de Fósforos e Circuito de Arte Contrajuego (iniciativa do ator brasileiro Ricardo Nortier, radicado em Caracas) ao lado da espanhola La Máquina Teatro, o espectador desavisado pode imaginar que trata-se de uma obra inserida na tradição do biodrama.
Orlando Arocha, diretor e responsável pela adaptação de Las Voces del Laberinto, livro de Ricard Ruiz Garzón, constrói sua encenação a partir de dois paradigmas fundamentais e aparentemente contraditórios, ainda que caminhem juntos de forma interessante: o hiperrealismo e a emulação de uma performatividade que percebe-se falsa ao longo da obra. Em se tratando de histórias reais coletadas por Garzón, Hay que tirar las vacas por el barranco busca na interpretação um rigor técnico impressionante a fim de fazer do palco um ambiente confessional, aberto à partilha, fazendo de seu elenco veículo dos testemunhos colocados na cena.
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São duas cenas protagonizadas por pessoas que convivem com familiares e entes queridos com esquizofrenia e três de pacientes acometidos pelo distúrbio. Há perceptivelmente uma diferença grande na lida com a composição de cada personagem-depoimento, entre o rigor da movimentação e entonação orgânica no primeiro caso e, ainda dentro de uma interpretação de base realista, a modulação dissociativa na construção das frases e ideias no segundo.
No simulacro performativo proposto por Arocha, a teatralidade se mantém mínima, avessa à espetacularização. A intenção parece ser a percepção de que está nesta não-teatralidade uma possibilidade de construção de uma cena cúmplice, quase convivial – o ambiente por vezes se assemelha à reuniões de grupos como os Alcoólatras Anônimos, e Hay que tirar las vacas por el barranco não esconde sua intenção de conscientizar seus espectadores em torno do estigma que envolve a esquizofrenia.
Nesta trajetória, do viver próximo ao distúrbio à conviver com ele, é como se o grau de ficção subisse um tom a cada monólogo. A oralidade naturalista daquelas que compartilham seus testemunhos de pessoas próximas aos poucos se desenvolve na direção de uma dramaturgia que, no jogo com a dissociação das personagens, torna-se um pouco mais cifrada, metafórica – até chegar no ditado zen que nomeia (e oferece uma espécie de moral) à obra.
A distância entre esses dois registros – da interpretação, da dramaturgia – também opõe, de algum modo, teatralidades do poder, que regem as diversas instâncias de relações na vida social, e suas possíveis dissidências. Em seu ensaio Teatralidade e dissidência (2015), o pesquisador espanhol José Antonio Sánchez afirma que é a consciência da representação que surpreendentemente impõe a aceitação da realidade. A realidade se define na consciência da representação. Quando os personagens tentam comportar-se espontaneamente, o fazem mal. Quando aceitam as leis da representação, sobrevivem ou triunfam.
Na lida com a neurodiversidade, Hay que tirar las vacas por el barranco tensiona as leis da representação a fim de apresentar outros modos de se ter imposta a aceitação da realidade. As formas através das quais a obra constrói sua ilusão cênica parece dialogar com a dissociação verificada nos pacientes com esquizofrenia. Na peça, implicam-se representação e real; na vida, a possível indistinção entre alucinação e realidade.
Ciente de que a representação não pode ser evitada em absoluto (no palco e na sociedade), Hay que tirar las vacas por el barranco busca no esvaziamento da espetacularização a possibilidade de trazer à tona, a partir do reconhecimento das regras do jogo teatral (da realidade e da cena), essas teatralidades dissidentes; essas outras formas de estar no mundo. Conforme aponta Sánchez, a representação tem a função de mostrar ou de fazer presente, não de ocultar ou provocar o esquecimento.
Assim, quando a encenação investe na representação, suas intenções ficam cristalinas: se, ainda segundo Sánchez, o atuar com naturalidade é na verdade uma reprodução de padrões de comportamento repetidos desde a infância, construir personagens neuroatípicos a partir desta perspectiva é uma tentativa de atualizar o naturalismo, que enquanto estética e técnica de interpretação foi desenhado precisamente para representar de forma verossímil este suposto ‘atuar com naturalidade’ que se produz no espaço doméstico.
Hay que tirar las vacas por el barranco transita entre as regras já consolidadas de teatralidades do poder, em sua composição hiperrealista, e esta emergência de teatralidades dissidentes, marcadamente em seu tema e discurso levado à cena. Na sequência de monólogos, as companhias venezuelanas e a espanhola fazem continuamente um convite a estar perto; a se identificar, se mobilizar, se envolver.
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ficha técnica Hay que tirar las vacas por el barranco Texto Ricard Ruiz Garzón, a partir de seu livro Las Voces del Laberinto Adaptação e direção Orlando Arocha Atores Ricardo Nortier, Diana Volpe, Gretel Stuyck, Haydée Faverola e Rafa Cruz Participam Abel Garcia e Robson Emílio Um encontro cultural Venezuela, Espanha e Brasil Produção no MIRADA Palipalan Arte e Cultura
Reflexão estupenda. Parabéns.