teatro

flores jamais nascerão em grama sintética

crítica de “Há dias que não morro”, das ultraVioleta_s

[com colaboração de Andréa Martinelli na edição]

Em meio à luzes neon, o público se vê forçado a passar por cima do que parece ser o cadáver de um palhaço. A Intervenção só de entrada carrega um pedido no próprio subtítulo: (favor esquecê-la). Na ação que inaugura as ultraVioleta_s, reverbera um dado de forma pouco sutil: trata-se de uma nova configuração da antiga Academia de Palhaços — cujo último trabalho sob este nome foi precisamente Adeus, Palhaços Mortos.

Ao olhar em perspectiva, parece até difícil creditar ao acaso a trajetória um tanto conturbada da trupe. Da kombi queimada em 2014 às atuais reformulações, há uma contundente afirmação e verticalização de linguagem no díptico — de uma trilogia por vir — que se efetiva com o espetáculo Há dias que não morro.

A proposta da companhia parece passar por um pensamento artístico focado na colaboração — o que se evidencia pela ficha técnica. José Roberto Jardim fica novamente a cargo da encenação; co-assina direção e concepção geral com as artistas do núcleo do grupo: Aline Olmos, Laíza Dantas e Paula Hemsi — que, além de estar em cena, habitam também funções diversas no trabalho.

Paula Hemsi, Aline Olmos e Laíza Dantas em divulgação de “Há dias que não morro” / foto: Paula Hemsi

O texto é de Paloma Franca Amorim — e a dramaturgia, co-assinada também por Jardim, Olmos, Dantas e Hemsi. Na escolha por Amorim, talvez opere-se uma das mudanças mais significativas do presente trabalho: a fricção da textualidade com a encenação caminha de forma bem distinta do que a fábula de Matei Visniec (adaptada por Jardim) no trabalho anterior.

Aqui há a construção de um cotidiano concebida por uma exímia cronista. É a sua tensão com as demais camadas da encenação que escancara a artificialidade que reside na insistência de uma pretensa normalidade aprisionante em repetição. A interpretação de Olmos, Dantas e Hemsi flerta com o que talvez se possa considerar uma bufonaria expressionista.

Saem os velhos palhaços e a morte da arte, entra um não-tempo de juventudes eternas e sementes que nunca se desenvolvem. Até mesmo o cubo cênico — novamente assinado pelo BijaRi — carrega consigo uma diferença fundamental de Adeus, Palhaços Mortos: não há a quarta parede, ou seja, a tela frontal. Em Há dias que não morro as figuras não encontram momentos de pleno ocultamento.

Ainda há uma densa teatralidade que pauta toda a precisa concepção no trabalho das três intérpretes — seja nos figurinos de Carolina Hovaguimian, ou na movimentação e expressividade das atrizes — mas parece haver um espaço maior para a humanidade escondida pela plasticidade estética.

“Há dias que não morro”/ foto: Paula Hemsi

Não que isso não acontecesse em Adeus, Palhaços Mortos. Mas a trajetória das encenações caminha de forma oposta. No trabalho anterior, o glitch beirava a deformação de um moribundo — a tradição, os velhos palhaços. Em Há dias que não morro, ele surge como uma ação de recusa; de negação frente àquela rotina invisivelmente massacrante de aguardar que flores nasçam de uma grama sintética.

Além das diferenças, há similitudes fundantes deste díptico — não apenas estéticas, mas poéticas. A repetição como possibilidade de (re)elaboração crítica é central, em diálogo com as mais ou menos perceptíveis transformações no texto e nas movimentações. Como se certas obviedades precisassem ser destrinchadas até seu núcleo, quase que exaustivamente evidenciadas até que se possa estabelecê-las como, de fato, óbvias.

Também reverbera a compreensão de certa contradição no discurso da obra como sua alavanca motriz. Nos dois espetáculos, as escolhas estéticas tensionam-se de forma consciente com a crítica proposta pelas encenações. Se havia, em Adeus, Palhaços Mortos, o entreato com luzes de serviço e a gravação de stories do Instagram, com a possibilidade de compreender um choque entre um suposto diletantismo do contemporâneo frente à tradição clássica da arte, Há dias que não morro termina quase que afirmando a fragilidade inerente ao teatro quando confrontado com a vida.

Talvez essa seja a questão central no trabalho das ultraVioleta_s. Assumir a potência da tensão e da contradição que pode existir — e ser bem-vinda! — entre discurso, obra e recepção, para que nessa ação revele-se o que há de humano nos dias que insistem em passar. Mesmo que a escolha seja não agir, cria-se uma possibilidade de romper com sentidos sintéticos dados ao viver. Fissurar o cotidiano pode significar também aceitar uma certa dose de sem-sentido da existência. Há dias que não morro, mas nem em todos estamos vivos.


“Há dias que não morro” / foto: Paula Hemsi