o precisar e a precisão (ou como se pinta hoje a caixa preta)
crítica de “Adeus, Palhaços Mortos”, das ultraVioleta_s (à época, Academia de Palhaços)
foto de Victor Iemini
Formada há dez anos por atores do curso de Artes Cênicas da UNICAMP interessados em pesquisar a máscara do palhaço tradicional brasileiro, a Academia de Palhaços viveu em 2014 um momento delicado de sua trajetória: sua “kombi-palco” é destruída em um incêndio, junto de cenários e equipamentos do grupo. Dois dos cinco membros desistiram do teatro. Mas Laíza Dantas, Paula Hemsi e Rodrigo Pocidônio não.
Depois de diversos projetos sob a batuta de Fernando Neves, em trabalhos dentro da perspectiva do circo-teatro, os três integrantes decidem convidar outro diretor para desenvolver uma nova pesquisa de linguagem. José Roberto Jardim é quem apresenta à Academia o texto “Um trabalhinho para velhos palhaços”, de Matei Vişniec – romeno cada vez mais encenado em nossos palcos.
Assinando direção, adaptação e desenho de luz (este último, junto à Hemsi), Jardim é preciso não apenas no que diz respeito à encenação, mas já na escolha do texto proposto ao grupo. Os três velhos palhaços de Vişniec, que aguardam em uma sala de espera serem chamados para um teste, lidam, em diálogos permeados por um humor que por vezes flerta com o absurdo, com a própria finitude, habitando o campo das memórias.
“Adeus, Palhaços Mortos” joga com o texto original como quem respeita a grande arte mas não deixa por um instante de buscar seus próprios caminhos. Lala, Pupa e Poci (Dantas, Hemsi e Pocidônio) são estes três velhos palhaços – com a contradição já inserida pelo fato de serem todos jovens artistas – esperando uma nova oportunidade, uma última, que se revela quase um Godot. O flerte temático com o absurdo está presente na construção dramatúrgica. Na adaptação de Jardim, o espetáculo divide-se em três atos. Trata-se de uma repetição que passa a alterar sentidos, criando fissuras no alinhamento entre os elementos da encenação; se no segundo ato tais deslocamentos ainda são pequenos, no terceiro é o “glitch”, a falha, a impossibilidade da execução perfeita que toma a frente. O texto também possui citações diretas e indiretas à Beckett e Shakespeare; o questionamento, neste caso, passa por o que fazer com os clássicos hoje – ou, o que está sendo feito deles.
A encenação insere os três palhaços em um cubo no centro do espaço cênico. Uma caixa preta contemporânea, assinada por BijaRi (cenografia e vídeo-instalação), cujas paredes recebem projeções que, em consonância com a luz, traçam recortes, dão cores e atmosferas para o espaço de maneira minimalista. Com precisão absoluta dos atores em relação aos demais elementos, a cena se revela e se esconde em blackouts constantes. São quadros de composição formal, executados com grande rigor. O contraponto à exatidão de tais quadros é dado pela modulação vocal dos atores e pelo ruído frequente dos “scratches” e efeitos da trilha sonora executada ao vivo pelo também diretor musical Tiago de Mello.
Em um espetáculo repleto de metalinguagem – afinal, a grande problemática é efetivamente a arte e aqueles que a fazem – além de ironia e uma inevitável autocrítica, a Academia de Palhaços faz uso de diversos elementos do teatro contemporâneo para, de certo modo, questioná-lo. A partir desta relação se dá a fricção entre a tradição – e o que se perde com sua morte, mas também seu engessamento – e a contemporaneidade do fazer artístico – e suas possibilidades, mas também seu diletantismo. É sobre o perigo de derrubar todas as fundações em todas as tentativas de se construir algo de novo; ignorar o que já foi feito em nome de um invencionismo por muitas vezes vazio de significação.
Quando “Adeus, Palhaços Mortos” se insere no problema, o faz com extrema consciência disso, sabendo da importância de buscar outras poéticas, sem ignorar a história e os movimentos estéticos. Dessa forma, ao mesmo tempo que se leva extremamente a sério também não deixa de rir de si mesmo. Em um dado momento da encenação, é dito pelos velhos palhaços que, ao morrerem, a arte morrerá com eles. A Academia de Palhaços parece saber que não é bem assim: a arte não morre com o velho; é a morte dela que mata o jovem.