só o cu não é ficção
crítica de fRuTaS&tRaNs-GRESSÃO. Histórias para Tangerinas e Cavalas-Marinhos, da Coletiva Profanas, apresentada na Mostra Solo Mulheres do Teatro de Contêiner Mungunzá
Enquanto me organizo para começar a escrever sobre fRuTaS&tRaNs-GRESSÃO. Histórias para Tangerinas e Cavalas-Marinhos, da Coletiva Profanas, tenho uma súbita vontade de escutar Radiohead. Faço uma playlist e quando Creep começa a tocar me dou conta da relação da canção com Ritu.1/Penetra!, performance duracional também criada por Morgana Olivia Manfrin. Nos dois casos, a escolha por uma escrita em primeira pessoa me faz pensar sobre autoralidade, singularidade e essa relação de implicação entre quem escreve e o que se escreve.
Sobre as palavras e seus gêneros; as pessoas e seus gêneros. Coletiva Profanas. Cavalas-Marinhos. A fruta Tangerina e a transgressora Tangerine, personagem (ou será persona?) de fRuTaS&tRaNs-GRESSÃO. Manfrin fala em cena nesta primeira pessoa que se é em (contínua) performance; se equilibra na instável performatividade imbricada no existir, faz de sua identidade relacional na lida com o público.
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A obra da Coletiva Profanas joga com o enquadramento da ficção teatral e a proposição do real na performance. Enquanto releio PODE UM CU MESTIÇO FALAR?, ensaio de Jota Mombaça, faço uma pausa para comer uma banana. Ao lado dela está a tangerina que ganhei ao assistir fRuTaS&tRaNs-GRESSÃO, que ainda não comi. Esboço uma risada ao pensar no quanto a banana é colocada como fálica e, na metáfora-síntese de Manfrin, a tangerina torna-se possibilidade não-binária numa tríade falo-vulva-cu.
Seguindo ainda as pistas de Kilomba, podemos inferir que, como a interdição da boca dos corpos bio-designados negros estava ligada à constituição de um discurso hegemônico não-negro no contexto da escravidão, a interdição do cu nos corpos adequados à norma heterocissexista torna possível a manutenção do gênero como ideal regulatório atrelado à heterossexualidade como regime político.
Nesse campo politicamente regulado, o cu é a parte fora do cálculo: a contra-genitália que desinforma o gênero, porque atravessa a diferença sexual binária. (Jota Mombaça em PODE UM CU MESTIÇO FALAR?, grifo meu)
Antes da utilização da fruta como representação das genitálias e do questionamento em torno da generificação que parte desta binariedade, Manfrin já havia trazido para o centro do discurso da encenação sua contra-genitália que desinforma o gênero: no início de fRuTaS&tRaNs-GRESSÃO, a performer introduz em seu cu um plugue anal. O objeto ficará lá por toda a obra. Não se vê o momento em que ela o retira. Após a apresentação na Mostra Solo Mulheres do Teatro de Contêiner Mungunzá, em uma conversa entre eu, Morgana e Tati Caltabiano, curadora da mostra, a performer brincou: quem garante que eu ainda não estou com o plugue até agora?
Seria o cu a única não-ficção em torno de gênero? A contranarrativa possível diante do binarismo cisheteroterrorista? Na organização de fRuTaS&tRaNs-GRESSÃO, Manfrin, como Tangerine, surge nascida do lixo e anunciada por um cão (Max Ruan, também assistente de direção e produção da obra). Rasga o saco, desvela o rosto e rompe o silêncio em uma encenação que é provocante na essência, pois contrahegemônica. A dissidência de gênero é o equilíbrio de salto sobre uma plataforma instável. É o jogo de queimada com meninos para um lado e meninas para o outro. Manfrin quer falar mas também deseja escutar. De onde vem o que não se questiona?
No diálogo que se estabelece entre público e performer, fRuTaS&tRaNs-GRESSÃO problematiza as construções normativas de gênero a partir de perguntas de aparência simples, mas tremendamente reveladoras de toda a ficção e regulação social por trás deste regime político sustentado pela cisheteronormatividade. A Coletiva Profanas propõe um manifesto-testemunho que grita enquanto aberto para ouvir.
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ficha técnica fRuTaS&tRaNs-GRESSÃO. Histórias para Tangerinas e Cavalas-Marinhos Morgana Olivia Manfrin: Diretora, Criação e Performer Kinda: Musicista e Performe Káshi Mello e Ícaro Kai: Composição de Trilha Renan: Design de Iluminação Marina Gatti: Design de Iluminação @marinagatti_ Max Ruan: Assistente de Direção e Produção Karen Sobue: Produtora Executiva foto de capa: Elza Cohen