nós estamos aqui (ou da essência na não-existência)
crítica de “frequência_ausente.doc”, da ExCompanhia de Teatro.
O ator Leonardo Gritzbur estava prestes à estrear seu monólogo. Baseado em “A Náusea”, de Jean-Paul Sartre, Gritzbur assina concepção, direção, dramaturgia, cenário, figurino, iluminação e atua em seu espetáculo. Para a estreia, na galeria localizada no 13o andar do Sesc Paulista, ele esperava seus convidados e o público em geral.
No entanto, até poucos minutos antes, nenhum deles havia chegado — e nenhum ingresso havia sido vendido. Gritzbur então desaparece. O ato inexplicável acontece mesmo com todas as câmeras do recém-reformado edifício.
É essa narrativa ficcional que serve de disparador para “frequência_ausente.doc”, da ExCompanhia de Teatro — Gritzbur, que já havia sido personagem de outra obra da companhia, não existe. Construída a partir de convite do Sesc como uma “exposição interativa” na programação da unidade, a experiência é individual e traz à tona reflexões sobre as relações que se estabelecem por meio do teatro e, fundamentalmente, sobre a presença.
O público — uma pessoa por vez, com saídas a cada dez minutos — é inicialmente conduzido para onde o monólogo seria apresentado. Após assistir um vídeo, é orientado para pegar um celular e um fone de ouvido e seguir as indicações de totens espalhados pelos andares da unidade (além das instruções nos vídeos assistidos no aparelho). A ausência física de Gritzbur é confrontada com não apenas os vídeos de seus últimos momentos no prédio, mas também sua voz que parece nos acompanhar de verdade. Sua fala alimenta a imaginação do participante.
Nas gravações, um excelente trabalho de Daniel Warren, principalmente no sentido de trazer a ilusão de que há alguém falando conosco naquele momento. Cabe destacar o trabalho técnico da ExCompanhia, que desde sua fundação, em 2012, se debruça em dinâmicas multimídia de criação. Assim, experimentam modos outros de lidar com a teatralidade, sempre criando fissuras entre o enquadramento ficcional e a realidade.
Nesse sentido, compreensíveis e necessárias intervenções de produtoras podem suspender o fluxo da experiência. A logística exigida pelo espetáculo, considerando não apenas os participantes mas os visitantes do Sesc, demanda certo nível de controle para que tudo ocorra da maneira mais precisa possível — isso, sim, fundamental para a obra; e que efetivamente acontece.
“frequência_ausente.doc” utiliza-se de tecnologia binaural — uma gravação realizada com dois microfones e preferencialmente ouvida por fones, para que cada ouvido ouça apenas o que está sendo emitido por cada lado do fone — que torna possível emular o som ambiente. Assim, somos envolvidos pela dramaturgia sonora, imersos em uma realidade outra, entre ficção e a materialidade do espaço.
Em um primeiro momento, a tecnologia até assusta levemente o espectador. No entanto, ainda que o efeito não deixe de surpreender, não é difícil embarcar na proposta. Inicialmente, talvez por convenção; aos poucos, a atmosfera ficcional — que até beira o sobrenatural — contamina aquele que se abre para a experiência.
Além da cativante interpretação de Warren, a dramaturgia de Bernardo Galegale, Gustavo Vaz e Gabriel Spinosa (que também assinam a direção) não apenas conduz os ouvidos e o olhar do participante pelos últimos registros de Gritzbur, mas também é preenchida de uma sutil beleza poética que redimensiona a obra. Pois se por um lado trata-se de um site specific que aproveita muito bem a estrutura do Sesc — como a biblioteca, as escadas externas e o entorno do prédio — por outro há todo um campo de reflexão sobre a presença e a existência.
Logo no início, Gritzbur revela que gosta muito do momento em que o ator desaparece para dar lugar à personagem. É de certo modo uma dica do que se revelará ao longo do espetáculo. Anunciado como “exposição interativa”, o que se propõe entre obra e participante é a construção de uma relação teatral, mesmo que de outra ordem.
O dado expositivo se apresenta também na construção material de uma processualidade ficcional; seja na relação dos vídeos com o local onde foram gravados — e onde os assistimos — ou mesmo nos elementos do espaço. O ator torna-se, então, a única coisa que não há de concreto.
Aos poucos, vamos conhecendo não apenas Gritzbur mas também alguns de seus amigos e conhecidos. Em um jogo interessante que desestabiliza a recepção dos acontecimentos, há também a presentificação de algumas figuras vistas em vídeo na unidade. Em outros momentos, o que se vê no celular dialoga com outros registros do ator, criando linhas de tensão entre coisas que podem soar cômicas, mas que no fundo são um tanto terríveis.
Obviamente não é coincidência o que seria a base literária do monólogo a ser apresentado: “A Náusea”, primeiro romance de Sartre, traz em sua narrativa — elaborada em uma espécie de diário — diversos temas caros à filosofia existencialista.
Nesse sentido, a potencialização da experiência individual do espectador dialoga diretamente com o existencialismo. Ironicamente, a essência de Gritzbur nos vai sendo revelada em sua ausência; em sua não-existência. Como afirma Sartre em “O existencialismo é humanismo”, “O homem nada mais é do que aquilo que ele faz de si mesmo”.
Gritzbur decide desaparecer para fazer emergir não apenas quem ele era naquele momento — no mínimo, um ator sem público à beira da estreia; o que já pode ser explorado de infinitas maneiras. Seu desaparecimento revela também quem muitas vezes somos; e a importância de se relacionar com o Outro — e de se entender Outro.
Ao terminarmos, sozinhos com Gritzbur, na calçada da avenida Paulista, compreendemos que para sintonizar uma frequência ausente é necessário para nós estarmos presentes. E o que é o teatro além da simples afirmação de que nós estamos aqui?
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