cama de sonhos que não amortece a queda
crítica de “Favor beber o leite, senão estraga”, do Coletivo Cronópio
foto de Ligia Jardim
Em sua preciosa “Gramática da Fantasia”, Gianni Rodari (1920 – 1980), fazendo a defesa da imaginação enquanto fundamental não apenas na educação, mas na formação da plenitude do ser humano, se debruça em diversos momentos sobre as fábulas. Sobre elas, afirma, a partir da teoria de Vladimir Propp (1895 – 1970), que “na estrutura da fábula se repete a estrutura do rito. (…) a fábula passou a existir como tal quando o rito antigo desapareceu, deixando de si apenas sua narrativa. (…) A teoria de Propp, no entanto, possui especial fascínio, porque institui uma ligação profunda – a nível do ‘inconsciente coletivo’, dirão alguns – entre o menino pré-histórico e o menino histórico que, justamente pela fábula, vive sua primeira iniciação no mundo do humano (…)”.
Sob outra ótica, Bruno Bettelheim (1903 – 1990), em “A Psicanálise dos Contos de Fadas”, analisa a importância destas narrativas fabulares – ainda que Bettelheim diferencie as estórias de fadas das fábulas; estas, no sentido utilizado por ele no livro, seriam admonitórias e com funções moralizantes – no processo de desenvolvimento psicológico da criança. Buscando definir a diferença entre mitos e contos de fada, se utiliza de uma frase de um poema de Lewis Carroll (1832 – 1898): o conto de fada é um “presente de amor” para a criança; pois ele “dá esperança para o futuro, e oferece a promessa de um final feliz.”
Neste sentido, “Favor beber o leite, senão estraga”, do Coletivo Cronópio, inverte o caminho que Propp sugere e recria um rito de iniciação a partir de uma narrativa fabular. O ser mágico escolhido como guia deste ritual de passagem, o Coelho, remete diretamente ao mesmo animal de “Alice no País das Maravilhas” (de Carroll). Se na fábula ela segue o animal até sua toca, de onde será transportada para o ambiente onírico onde a história se desenvolve, na dramaturgia de Alice Nogueira (em parceria com os atores-criadores) em “Favor beber o leite” é um Coelho que vai atrás de seu humano, no momento em que este completa quinze anos.
Da mesma forma que “Alice” apresenta-se como um livro complexo, que pode ser lido e interpretado de formas diferentes pelo jovem em processo de descobrimento e pelo adulto que – em teoria – já passou por aquele momento, o espetáculo, ao ser criado por duplas adulto/adolescente, possui também essa potência de leituras distintas. Assim, é teatro jovem em uma acepção ampla do termo – afinal, a discussão sobre o momento em que o jovem passa a ser adulto está inserida na própria obra.
Concebido em um processo de quase dois anos de ensaios (de junho de 2013 a abril de 2015), a obra tem como disparador o tema da transição para a idade adulta. O elenco original era composto, então, por três adultos (Ana Junqueira, Leonardo Birche e Tathiana Botth; todos por volta dos vinte e tantos e trinta e poucos anos) e três adolescentes (Clara Cornejo, Débora Peccin e Olívia Campelo; então com quinze anos). Foi na fricção destas relações que se estabeleceram duplas – e cada adolescente ganhou o seu Coelho.
Na configuração atual, duas adolescentes foram substituídas, mas muito da dramaturgia original foi mantida. Dessa forma, Gabriel Labaki conta as histórias e sonhos de Campelo, e a atriz convidada Julia Terron, de Cornejo. A escolha da encenação de revelar, já no final da peça, que Labaki e Terron não são as fontes reais daquelas narrativas, funciona de modo interessante: ainda que o jogo entre real e ficcional acabe sendo colocado em questão neste momento, visto que em intervenções épicas durante o espetáculo esta relação era a todo momento revelada, ela reassegura ao mesmo tempo o caráter universal de certos questionamentos existenciais que passamos durante a adolescência e também a singularidade que nos diferencia – quando uma atriz que não canta substitui uma cantora, não seria crível fazê-la cantar como se isso fizesse parte de quem ela é.
“Favor beber o leite, senão estraga” põe em cena uma coxia e a cena propriamente dita – no entanto, ambos podem servir de espaço para o real e para o ficcional; ainda que a cena privilegiará o campo do onírico, se constituindo de uma enorme piscina de balões brancos (1250 deles, como somos informados), este transborda, tanto para a coxia – onde insistentemente os atores devolvem as bexigas para a cena – quanto para o proscênio – “inundando” o espaço até os pés dos espectadores – que também serve de espaço para depoimentos e interações com o público.
As bexigas, como que uma enorme nuvem de sonhos, vão pouco a pouco estourando; seja de forma proposital, seja no próprio movimento dos atores e atrizes. No jogo entre Coelhos e adolescentes, entre desejos irrealizáveis e aqueles efetivamente cumpridos pelos adultos, o voo dos balões, seu transbordamento e seus estouros, é o jogo de construção e desconstrução dos sonhos no processo de amadurecimento.
Os Coelhos, no entanto, não são guias para um futuro esperançoso. São confusos, parecem não saber exatamente como seguir sua tarefa – ou mesmo qual é ela. Eles apresentam um mundo novo para os jovens. Há uma dialética implícita neste pensamento, visto que ao mesmo tempo que a encenação sugere o mundo dos sonhos, a leitura que se tem é que estes adolescentes estão descobrindo a dureza do mundo adulto. Envelhecidos após os 83 minutos da encenação, são eles que encerram o espetáculo, sozinhos em uma piscina já esvaziada, abandonados à sua própria sorte por seus Coelhos.
O Coletivo Cronópio, que traz um ser criado por Julio Cortazar (1914 – 1984) no próprio nome, faz novamente referência à obra do autor, assim como em sua peça anterior, “(instruções para compor uma peça) – Se for viver, leia antes”. Se ali a dramaturgia trazia muito do autor argentino, em “Favor beber o leite, senão estraga” há apenas uma citação direta – de “Preâmbulo às instruções para dar corda no relógio” (“Histórias de Cronópios e de Famas”) – mas há a lógica cortazariana inserida na relação da encenação com o tempo.
Se o Coelho de “Alice” parece estar sempre atrasado e olhando para o relógio – e talvez seja sua velocidade que chame a atenção da menina – o Coelho de Alice Nogueira surge como um presente – longe do “presente de amor” proposto por Bettelheim citando Carroll – para o jovem em seu momento de amadurecimento. Porém, este presente traz consigo toda uma noção outra de tempo, responsabilidades e dados do real. O Coelho traz o sem-sentido do movimento incessante e preciso dos ponteiros do relógio. Ele é o relógio que lhe é dado de presente e, citando Cortázar, “quando dão a você de presente um relógio estão dando um pequeno inferno enfeitado, uma corrente de rosas, um calabouço de ar (…) Não dão um relógio, o presente é você, é a você que oferecem para o aniversário do relógio”. Ainda assim, é impossível fugir do Coelho; tampouco se pode matá-lo e, se ele não vier, é a não-vinda dele que nos assombrará por toda a nossa transição para a idade adulta.
Estruturada de maneira pós-dramática, fazendo extenso uso de recursos do teatro contemporâneo – a performatividade dá o tom da encenação, além das projeções de vídeos gravados e ao vivo – e com diversas intervenções épicas, “Favor beber o leite, senão estraga” é uma obra que parte de questões individuais vividas pelos integrantes do Coletivo, sejam elas elementos de memória, do passado dos adultos que já receberam, de algum modo, visitas de seus Coelhos; sejam elas projetos de futuro imaginados pelos jovens mirando à distância. Tais questões se redimensionam na articulação dramatúrgica entre o real e o ficcional – tanto no imaginário do espectador quanto de forma direta, quando, por exemplo, os pais e mães de pessoas do elenco leem, em vídeo, um texto ficcional e logo em seguida apontam sua identificação com aqueles velhos clichês de relação entre parentes e filhos.
Desta maneira, como já dito, o espetáculo carrega em si potência para atingir àqueles ainda repletos de sonhos e nós, adultos, cujo mundo, este moinho, já triturou tantos e gestou novos. Ao criar o mito do Coelho dos quinze anos e aceitá-lo, dramaturgicamente, enquanto um rito de passagem absolutamente real e crível, o Coletivo Cronópio nos lembra – ou nos antecede – este caminho sem volta que é nossa relação com o mundo – e com nós mesmos – se alterando enquanto envelhecemos. E nos lembra que, na realidade, o envelhecimento não é uma certeza. Sobreviver à visita deste Coelho confuso e atrapalhado; sobreviver aos nossos sonhos que deixamos para trás; sobreviver ao que nos tornamos; tudo isso é uma dúvida tão concreta quanto sobreviver em si. Tornar-se adulto é, ao mesmo tempo, dar sentido a passagem do tempo – dos segundos às décadas – sem permitir que toda nossa cama de sonhos se esvazie e nos reste apenas o concreto.
[obras citadas: Bettelheim, Bruno. “A Psicanálise dos Contos de Fada”; tradução de Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2ª ed., 1979 / Cortázar, Julio. “Histórias de Cronópios e de Famas”; tradução de Gloria Rodríguez. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 3ª ed., 1977 / Rodari, Gianni. “Gramática da Fantasia”; tradução de Antonio Negrini. São Paulo: Summus, 1982.]