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não cante vitória muito cedo, não

crítica de Um Fascista no Divã, com idealização e interpretação de Giovana Echeverria; texto de Marcia Tiburi e Rubens Casara com direção de André Capuano. este texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da Corpo Rastreado.

Não cante vitória muito cedo, não. / Nem leve flores para a cova do inimigo, / que as lágrimas do jovem / são fortes como um segredo: / podem fazer renascer um mal antigo. (Belchior – Não Leve Flores)

Em 2015, Marcia Tiburi publicou a coletânea de ensaios Como conversar com um fascista: reflexões sobre o cotidiano autoritário brasileiro (Editora Record). Nele, a filósofa busca esmiuçar o que mobiliza a ascensão do fascismo vista nestas primeiras décadas do século XXI, lançando o olhar especialmente sobre os pilares que fundam as subjetividades desses sujeitos: medo, ressentimento, ódio. Nos anos seguintes (2016/2017), ainda antes da eleição de Jair Messias Bolsonaro à presidência da república, ao lado de Rubens Casara, Tiburi escreve Um Fascista no Divã.

No movimento da forma ensaística para o drama, Tiburi (e Casara) transformam reflexão em ação; sujeito analisado em personagem; e a própria análise como cerne do conflito. Na obra, um político de extrema-direita começa a frequentar o consultório de uma psicanalista a partir da sugestão de seu marqueteiro. O primeiro nó de Um Fascista no Divã é o fato de que não se trata de “um” fascista, no que poderia se tornar um frutífero confronto do olhar progressista diante daquele familiar ingênuo e alienado que muitas e muitos brasileiros viram embarcando na onda conservadora e reacionária dos últimos anos. A figura em questão é nitidamente “o” fascista; diante da psicanalista está, indubitavelmente, o ex-presidente (à época da escrita, ainda deputado federal) Bolsonaro.

Assim, quando Um Fascista no Divã é levado à cena em 2023, há muito do material que deve ser tensionado aos absurdos desmandos tornados políticas de Estado que a sociedade brasileira testemunhou nos últimos anos. No projeto idealizado – e interpretado – por Giovana Echeverria, André Capuano busca, enquanto diretor, construir dispositivos cênicos que façam da dramaturgia um pretexto para o que se pretende lançar enquanto efeito e reverberações. Não Leve Flores, de Belchior, escutada em certo momento da encenação, parece uma das tentativas de atualização das reflexões propostas por Tiburi e Casara num já longínquo 2017; “não cante vitória muito cedo”, não: Luiz Inácio Lula da Silva subiu a rampa do Planalto, se aproxima dos primeiros cem dias de mandato, um novo horizonte já se pode vislumbrar, mas ainda se pode “fazer renascer um mal antigo”. A cadela do fascismo está sempre no cio.



É inerente aos anseios das teatralidades políticas contemporâneas buscar responder aos tempos que correm, fazendo frente aos acontecimentos que impactam a organização social do país. Ao mesmo tempo, parece ser fundamental refletir em torno das possibilidades formais de fazê-lo. Analisando o espetáculo Dr. Anti, da Cia. Extemporânea, Heloisa Sousa, do Farofa Crítica, aponta para a organização estrutural do material como uma “dramaturgia-retrato, onde a imagem-texto é montada desde o início da peça e segue apresentando as mesmas linhas identificadas até o final dela”. 

Ainda que a encenação de Capuano busque em suas materialidades e dispositivos agregar novas camadas à Um Fascista no Divã, a trajetória da psicanalista vivida por Echeverria e do antagonista, interpretado por um coro diferente a cada apresentação, formado por pessoas da plateia, acaba por seguir a lógica verificada por Sousa em Dr. Anti, espelhando “a dita polarização política que se armou no Brasil”, que “criou um cenário maniqueísta de bem e mal, herói e vilão”, freando “debates críticos e possibilidades de discussão de análises mais consistentes sobre a realidade que pudessem, inclusive, sugerir ações sociais que transformassem formas de pensar e agir politicamente”.

Na mesma crítica, a autora reitera que tais apontamentos a respeito de Dr. Anti não são “uma defesa das figuras de poder em seus projetos genocidas, mas uma tentativa de olhar para a população que apoia esse projeto e perceber como ela se constrói nessa incoerência e quais as possibilidades de escapar dela”. Em que pesem as diferenças estruturais entre o espetáculo analisado por Sousa e o objeto deste texto, tratam-se de reflexões que podem se aplicar aos modos de se pensar e fazer teatro político na contemporaneidade.

Um espetáculo não tem como função resolver os problemas da sociedade; tampouco é sua obrigação apontar para caminhos e ações possíveis. Mas o risco assumido pela dramaturgia-retrato diante do cenário político é, conforme também aponta Sousa, narcísico: “Vou ao teatro para ver diante de mim a afirmação de tudo aquilo que eu já penso”. É o que ocorre na adesão irrestrita da plateia diante da comicidade do Ubu Rei encenado por Gabriel Vilela ao lado de Os Geraldos: seu sucesso pode ser visto como um fracasso do material, considerando as intenções críticas e transgressoras que permeariam as intenções da obra.

Não se pode afirmar que é o mesmo caso de Um Fascista no Divã, visto que a angústia tornada desespero da analista interpretada por Echeverria é o que é recebido e sentido pelo público, de modo que compartilha-se aí precisamente o fracasso diante de um fenômeno de complexa apreensão. Se o inconsciente do fascista, a partir da compreensão de Tiburi e Casara, está manifesto a todo momento, ele é o centro oco da cebola proposta por Hannah Arendt como imagem que estrutura o totalitarismo. Assim, Um Fascista no Divã chega à simples conclusão de que não há como levar um fascista ao divã. Será? Observando a dimensão do bolsonarismo no Brasil, é absolutamente aterrador considerar que estamos diante de uma massa cujas subjetividades foram inteiramente capturadas por este vazio de sentido, reflexão, alteridade.

A trajetória de Um Fascista no Divã é o retrato de uma impotência generalizada dos últimos anos: no dispositivo cênico do coro e seus pontos eletrônicos, o fenômeno da massificação estrutural do fascismo ganha forma e cena, evocando as multidões que corroboram com determinados discursos e apenas repetem e obedecem. O consultório do início aos poucos é tomado pelos ideais e signos do fascismo brasileiro contemporâneo; e a transformação da cena parece ser também a da mente daquela psicanalista, atordoada por seu fracasso diante de um monolito bruto, violento, inatingível. 

Ao mesmo tempo, o televisor no fundo do palco insiste em lembrar que não se trata de um fenômeno novo. O fascismo tem suas raízes, seus tentáculos e segue contaminando mentes e populações. Nas imagens, também, vitórias, como o cadáver suspenso de Mussolini, além de uma lembrança ideológica poderosa nas palavras de Max Horkheimer: “Quem não quer falar de capitalismo deveria também se calar sobre o fascismo”.

A imagem-síntese do trabalho talvez seja a piscina, nojenta, posta em cena já nos momentos finais da obra, por duas leituras advindas das composições cênicas. Primeiro, pelo representante do coro-fascista (chamado de coro antifascista pela produção, mas na prática trata-se do oposto) poder entrar nela sem sujar seus pés enquanto Echeverria está descalça. Segundo, porque não há profundidade alguma naqueles dejetos; não há qualquer possibilidade de mergulho. Resta apenas molhar os pés, lavar o rosto na imundície e tentar encontrar forças para seguir em luta.

logo do projeto arquipélago

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ficha técnica
Um Fascista no Divã

Texto: Marcia Tiburi e Rubens Casara
Idealização: Giovana Echeverria
Direção: André Capuano
Elenco: Giovana Echeverria
Direção de arte: Renato Bolelli
Iluminação & vídeo: Daniel Gonzales
Sonoplastia: Miguel Caldas
Operador de luz: Daniel Gonzales
Corifeu: Benedito Canafístula
Cenotécnico: Bibi de Bibi
Assistente de iluminação: Felipe Mendes
Assistente de direção de arte: Wesley Souza da Silva
Design: Veni Barbosa
Foto divulgação: Flora Negri
Foto/filmagem: Cabaça Produções
Assessoria de imprensa: Canal Aberto
Produção: Corpo Rastreado | Gabs Ambròzia
https://www.projetoarquipelago.com.br/