teatro

o que se faz para parecer o que é visto

crítica a partir de Experimento Espelho 2.0, do Núcleo Instável

Quando a transmissão ao vivo de Experimento Espelho 2.0 foi encerrada, o recurso de reprodução automática do YouTube estava ligado. Em poucos instantes, a televisão passaria a exibir um vídeo sobre a gestão de crise realizada pela Globo em torno da saída de Karol Conká do Big Brother Brasil.

Talvez faça sentido iniciar um texto sobre o espetáculo online do Núcleo Instável compartilhando algo que está na obra, mas também além dela: as telas, as redes sociais e, principalmente, como as relações têm se estabelecido a partir destas novas mediações, na era da internet.

Experimento Espelho 2.0 é uma adaptação do conto O Espelho – esboço de uma nova teoria da alma humana, de Machado de Assis, escrito em 1882. Nele, o bruxo do Cosme Velho conta a história de cinco cavalheiros reunidos em uma casa, no morro de Santa Tereza, onde discutem em torno de questões metafísicas.

Um deles, chamado Jacobina, mantém-se quieto, pois afirma jamais entrar em conflitos. Questionado sobre o que pensa sobre a existência da alma – ponto central do debate – diz que só falará se os demais o ouvirem em silêncio. E então compartilha uma história de sua juventude a fim de provar seu ponto: não há uma só alma, há duas.

Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro… (Trecho de O Espelho, de Machado de Assis)

Jacobina, passando uma temporada no sítio de uma tia, em determinado momento se percebe sozinho. É só então que nota que sua alma externa dominara a interna. Sentindo-se disforme, consegue apenas ver-se pleno ao vestir a farda de alferes, título recém conquistado, diante do enorme espelho instalado em seu quarto. Em síntese, nesta nova teoria da alma humana proposta pelo narrador de Machado de Assis, a aparência se sobressai à essência.

Na adaptação do conto, o objeto-título multiplica-se na forma de câmeras – são quinze, no total – cuja operação e edição ao vivo é realizada de dentro da cena pelos três atores na transmissão. André Zurawski, Marcelo Moraes e Thomas Huszar assinam texto, direção, interpretação e a adaptação para a versão online – o espetáculo, concebido sob orientação de Luiz Fernando Marques Lubi, cumpriu quatro temporadas entre 2016 e 2017.

Os três surgem separados; o começo se assemelha a uma cena já habitual nos tempos que correm: um truncado início de reunião no Zoom. No diálogo entre eles, surgem relatos processuais em torno de suas ideias para a adaptação do conto machadiano; aos poucos, o público se dá conta que Espelho 2.0 já começou – e que o elenco está reunido em um pequeno cômodo onde papeis de parede e outros adereços criam ambientes diversos.

Zurawski, Moraes e Huszar se alternam entre operadores de câmera, editores, narradores e personagens de acordo com a necessidade da encenação. A precisão na realização destas ações faz com que a complexidade da transmissão se torne não apenas orgânica mas efetive-se enquanto fundante da proposta do Núcleo Instável. Trata-se de uma obra atenta às possibilidades tecnológicas presentes em um experimento online que as compreende como estruturantes para a linguagem desenvolvida.

Marcelo Moraes em Experimento Espelho 2.0
Marcelo Moraes em Experimento Espelho 2.0 / foto: Cacá Meirelles e Ricardo Oya

Em dado momento, o template da imagem de um dos atores sugere que uma transmissão ao vivo está acontecendo em um perfil do Instagram. Ao pesquisar no aplicativo, verifica-se que é ficcional, um recurso estético. Porém, é curioso notar que a busca por sr.alferes traz dois resultados.

Um deles é um perfil fechado, cuja bio aponta para um trabalho escolar, provavelmente desenvolvido durante a pandemia, em torno do conto machadiano. O outro parece um perfil legítimo, em aparência verdadeiro. O alferes em questão talvez seja um jovem militar brasileiro. E a farda realmente parece dar sentido a quem ele é – ou deseja ser.

Tanto o comentário inicial acerca da reprodução automática quanto este causo quase anedótico do perfil deste seu alferes dialogam diretamente com o discurso inserido pelo Núcleo Instável em seu Experimento 2.0. Mais do que nunca, o espelho onde nos vemos tornou-se uma tela. Aplicativos e filtros fazem com que aquilo que vemos de nós seja algo passível de construções e sempre pronto para ser compartilhado.

Na fricção dos tempos do espetáculo online, a farda vestida pelo jovem alferes hoje poderia se traduzir em uma coreografia do TikTok. Talvez a sensação da distinção entre a coletividade – a patente garante uma posição de autoridade sem prejuízo ao pertencimento – esteja hoje na quantificação de seguidores e likes. 

Nas redes sociais, selecionamos – ou, ainda, algoritmos selecionam por nós – o que desejamos ver e como desejamos ser vistos. Considerando a amplitude que o ambiente digital possui em nossas vidas, não está aí também a cisão das almas proposta por Jacobina? O vidro do espelho dá lugar ao vídeo do virtual; o reflexo torna-se a reprodução.

Antes de chegar nas problemáticas mais candentes, Moraes, Huszar e Zurawski revisitam suas memórias. O cômodo onde a ação se dá tem um quê de garagem ou de depósito, onde brinquedos e tecnologias das últimas décadas se acumulam e conversam entre si. Os atores fazem parte da primeira geração que cresceu entrando em contato com a internet – millenials.

Entre 1882 e 2021, Experimento Espelho 2.0 também lança o olhar para a década de 1990. A virada do século teve seus saltos gigantescos para aqueles que cresciam no período: em pouco tempo, as fitas gravadas para ouvir no walkman eram sobrepujadas pelos mp3 baixados de programas como eMule e KaZaA. O telefone, antes única maneira de conversar à distância com amigos, agora servia apenas para a conexão dial-up; depois da meia-noite, com o pulso único, as salas do Bate-Papo UOL estavam cheias. O número do ICQ é uma lembrança insistente até hoje, assim como o login do MSN.

Tal qual Jacobina observava a sua juventude, o Núcleo Instável também mira a própria. No Experimento, porém, as possibilidades de almas externas, ao surgirem de forma nostálgica, parecem mais vinculadas às essências, ainda que mutáveis, do que às aparências. Talvez haja aí uma ingenuidade, um respiro, superada na lida mais direta com o material do conto na contemporaneidade.

Nunca os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como um piparote contínuo da eternidade. (Trecho de O Espelho, de Machado de Assis)

Nossa relação com o ambiente virtual tornou-se ainda mais intensa durante a pandemia. Forçados a olhar para nós mesmos, existir parece ter se tornado mais complexo. Com a alma interior ferida, resta voltarmo-nos para a alma exterior. É nesta percepção que parece estar algo central na pesquisa de linguagem de Experimento Espelho 2.0.

A fragmentação possibilitada pela multiplicidade de câmeras, somada à direção de arte do cômodo, permite ao Núcleo Instável o uso de diversos efeitos visuais, inclusive de caráter ilusionista. Mas a edição, aqui, é apenas uma ferramenta que possibilita a narração da própria construção. A escolha do grupo é, assim, constantemente dar a ver ao público o que se faz para parecer o que é visto.

André Zurawski em Experimento Espelho 2.0
André Zurawski em Experimento Espelho 2.0 / foto: Cacá Meirelles e Ricardo Oya

Serviço

Experimento Espelho 2.0
De 26 de fevereiro a 21 de março
Sexta, sábado e domingo, às 21h
Duração: 50 minutos
Classificação Indicativa: 12 anos
Grátis
Link de acesso: nucleoinstavel.com/aovivo