ensaio sob o picadeiro
crítica de Freud – Einstein, Maio de 1933, da companhia Circo Mínimo.
Albert Einstein e Sigmund Freud se encontram em 10 de maio de 1933. Conversam sobre a vida e a guerra, sobre os movimentos do universo e, principalmente, dos seres humanos. Na noite daquele mesmo dia, seus livros serão queimados em praça pública na Alemanha nazista. A companhia Circo Mínimo leva este diálogo para o espaço do picadeiro na peça filmada Freud – Einstein, Maio de 1933.
A situação fictícia é proposta pelo psicanalista francês Alain Didier-Weill em dramaturgia que se apoia na troca real de correspondências entre o pai da relatividade e o pai da psicanálise ocorridas em 1932 e publicadas no livro Porquê a guerra?.
O resultado é um texto denso, onde discursos complexos são friccionados na busca pela compreensão das ações humanas, marcadamente a violência e a intolerância características do nazifascismo – de algum modo em ascensão nos tempos atuais.
A obra de Didier-Weill foi escrita há dez anos, antes da escalada global do autoritarismo dos governos de extrema-direita, o que faz com que três épocas sejam sobrepostas – 1933, 2010 e 2021. São olhares de distâncias simultaneamente panorâmicas e microscópicas. A encenação opta pela forma de ensaio a fim de poder circular com maior liberdade pelos temas e tempos.
Há um importante didatismo em Freud – Einstein, onde a quebra da quarta parede permite ao elenco explicar – ou explicitar – questões presentes na dramaturgia. Por outro lado, há certa tensão entre o refinamento geralmente esperado de uma obra fílmica e o inacabamento processual tão presente no teatro contemporâneo.
O diálogo com o circo amplia os significados dos debates racionais: sob a lona, o público está habituado a impressionar-se com o risco, a ver-se diante do impossível, enquanto os artistas do picadeiro possuem domínio total sobre seus movimentos – e das forças que agem sobre eles.
De certo modo, essa aparente oposição reverbera no diálogo que busca, entre os conhecimentos da física e da subjetividade, organizar de modo racional as origens e as sustentações do ódio, da violência e da guerra.
Como escreveu Bertolt Brecht, em tempo de desordem sangrenta, de confusão organizada, de arbitrariedade consciente, de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural. Nada deve parecer impossível de mudar.
O alemão foi um dos tantos que teve suas obras queimadas em 1933. Ao final do espetáculo, novos nomes são adicionados à lista do que seria, como nomeou Goebbels, o lixo intelectual: Djamila Ribeiro, Grada Kilomba, Milton Hatoum.
O Circo Mínimo permite que certas associações sejam feitas de forma sutil, mas também aponta diretamente para as relações entre passado e presente. Antes mesmo do longo diálogo sobre a idolatria, é possível escutar o inconfundível coro que repete a evocação do absurdo de nossos tempos – mito, mito!
A direção da cineasta Lygia Barbosa é escolha acertada, considerando o caráter fílmico pretendido. Na intersecção entre teatro, circo e cinema, características das três linguagens confluem de maneiras ora harmônicas, ora ruidosos.
O circo – além de ambientar a ação na cuidadosa direção de arte de Marco Lima – se destaca a partir do recurso dramatúrgico utilizado pela companhia de situar a obra como um ensaio de uma trupe que pretende montar o texto de Didier-Weill.
Neste sentido, as habilidades de Karen Nashiro (que interpreta Anna Freud) poderiam ser melhor aproveitadas. A atriz encontra maior expressividade em sua movimentação corporal do que em suas participações nos diálogos.
A linguagem cinematográfica, com direção de fotografia de Maká, explora longos planos-sequência, com alguns pontos de corte pouco sutis, optando por quadros mais abertos e câmera única na maior parte do tempo.
Talvez esteja na fricção da forma-ensaio com o produto-filme um dos nós da encenação: a processualidade teatral torna-se dissonância na obra acabada. Uma possibilidade seria compreender o estabelecimento da convenção do ensaio ainda no início, e então seguir de forma mais segura – sem a presença, por exemplo, do texto na mão dos atores.
Rodrigo Matheus (Einstein) e Joca Andreazza (Freud) sustentam de forma habilidosa o jogo cênico, mantendo a clareza em suas falas mesmo nos momentos mais espinhosos e complexos do diálogo entre mentes tão ilustres. Ainda assim, os olhos focados constantemente nos papéis em suas mãos parecem limitar suas ações. É um ruído pouco bem-vindo à fruição.
A trilha sonora de Leonardo Padovani, em cena como músico, realça o caráter artesanal da linguagem teatral; ainda assim, é curioso observar que em certos momentos, o som de seu violino torna-se incidental, fundamentalmente quando o artista está fora de quadro. Nesta escolha, parecem-se sobrepor tempo presente e tempo passado.
Circo-teatro e cinema. O Brasil de 2021 e a Alemanha de 1933. No ensaio de uma trupe no picadeiro, as tentativas de entender o impossível. Há noventa anos, queimavam-se livros e não mais pessoas nas fogueiras do ódio e dos poderes. O que será que as pulsões de morte e do progresso nos reservam hoje?
Olá Amilton: muito boa a sua crítica. Concordo muito com ela. A opção do texto nas mãos não foi positiva, nem bem realizada, infelizmente. Obrigado, abraço.