orgulho, teatro

emergir é existir

crítica de “Gaveta D’Água”, do Satyros

Dentre as obras que geraram polêmica dentro da exposição Queermuseu, de 2017, está a série Criança Viada, de Bia Leite, inspirada no Tumblr de mesmo nome , hoje inativo, que foi criado em 2012 por Iran Giusti. As gravuras coloridas traziam crianças com poses e trejeitos não-normativos acompanhadas de frases como “Adriano criança viada bafônica <3”.

É difícil para uma sociedade estruturada em relações hetero e cisnormativas compreender que crianças não se importam com os papéis de gênero. Não faz sentido projetar expectativas padronizadas e normativas sobre todas as pessoas, sejam elas bebês, crianças, adolescentes, adultas ou idosas.

Exaltar, de forma alegre, a liberdade e a diversidade desde a infância é uma constante luta para que suas existências sejam garantidas. O bullying segue sendo uma realidade dura e, geralmente, é focado naquelas e naqueles que se localizam fora dos padrões. O debate sobre a homofobia passa longe de ser uma prioridade na maioria das escolas e, infelizmente, famílias.

Assim, ainda que nos tempos correntes haja uma abertura para estes temas — amplificada, possivelmente, pelas redes sociais — que não existia há poucos anos atrás, a violência persiste. Quantas vidas são perdidas diariamente, vítimas de crimes de ódio?

Sobre uma das gravuras de Bia Leite, lê-se Criança Viada Deusa das Águas sobre um rosto sorridente. No monólogo Gaveta D’Água, realização d’Os Satyros, o protagonista sem nome que narra sua história — que parece não se localizar temporalmente — reconhece em si não apenas um sonho, mas a ânsia de existir enquanto sereia. Seu desejo de liberdade é confrontado pela violência.

Silvio Eduardo em “Gaveta D’Água” / foto: Laysa Alencar

A narrativa de Nina Nóbile, que assina a dramaturgia, aos poucos se decodifica. O início, cifrado, instaura um ambiente onírico e parece ambicionar seguir, como que em espiral, localizando pouco a pouco o espectador temporal e espacialmente, indo cada vez mais a fundo. Até que as ações — do passado, do presente, do futuro? — vêm à tona, e algumas metáforas são, então, explicadas. A direção de Gustavo Ferreira propõe uma encenação quase lírica a fim de acompanhar a imbricada textualidade, e é suportado pelos demais elementos da encenação.

Para além do ator Silvio Eduardo no palco, cabe lembrar da coletividade que sustenta um monólogo. A direção de arte, assinada por Cinthia Cardoso, Diego Ribeiro e Elisa Barboza, surpreende. Seis figuras ritualísticas assombram o cenário, por vezes ocultas e por outras evidenciadas pela iluminação. Os desenhos de luz se destacam pelos recortes propostos em toda a obra; além da forte imagem final, os recortes dialogam com a movimentação de Eduardo — por vezes, parece que ela é quem conduz o ator em cena. Além disso, a trilha sonora original de Marcelo Nassi se desenha com beleza — e, em sua constância, os bem definidos silêncios se potencializam.

Na construção entre texto, direção e intérprete, o trabalho de Eduardo em Gaveta D’Água vivifica as palavras de Nóbile com uma hábil articulação entre atmosferas e tempos. Sua agilidade em alternar registros de interpretação mantém o espetáculo dinâmico — ainda que possa beirar uma força excessiva em alguns momentos.


Silvio Eduardo em “Gaveta D’Água” / foto: Laysa Alencar

É só ao longo da narrativa que se compreende efetivamente o tema central do espetáculo. Um compartilhamento de vivência violenta, um assassinato com motivações homofóbicas, memória, denúncia, invenção… O afogamento pode ser visto como concreto ou simbólico em Gaveta D’Água, e, ainda que possa soar confuso, esta parece ser uma potência do espetáculo.

Assim como o personagem enfrenta o quase paradoxo de situar-se dentro de uma definição ao mesmo tempo em que luta para que essas distinções possam ser superadas, o espetáculo apresenta uma complexidade que torna difícil organizar suas tantas imagens e discursos nas tantas gavetas possíveis. No fluxo vertiginoso entre memória, presente e — talvez — futuro, o público se depara com camadas densas que se sobrepõem. De certo modo, é como se o desespero do afogado transbordasse para a cena, restando ao espectador uma perplexa contemplação que oscila da beleza ao desamparo.

A liberdade da Criança Viada Deusa das Águas pode soar afrontosa para alguns. O sonho de existir sereia parece não caber nas gavetas de certos imaginários. Compreender que esta violência não pode impedir ninguém de mergulhar e emergir é fundamental. Mergulhar nas profundidades de nós mesmos; buscar respirar embaixo dessas águas. Entender a imensidão de dentro para implodir as tantas gavetas onde a sociedade busca organizar a vida. Emergir em plenitude; ser. Sereia.

Gravuras da série “Criança Viada”, de Bia Leite / foto: divulgação